Não é pouca coisa conhecer a casa de um amigo. Quando você ainda é criança e seu mundo está nas primeiras fases da sua sem-fim expansão, as fronteiras do que você conhece estão atreladas aos espaços que você ocupa normalmente e aos laços mantidos pelos seus pais, tudo é novidade e tudo o que é novidade é envolto de mistério e encanto e, às vezes, terror. Mistério e encanto e terror era o que eu sentia quando eu ia à casa de um amigo pela primeira vez.
Quando você faz um amigo na escola, o que você sabe é aquilo: quem ele é das 7 às 12, de uniforme. Você conhece o amigo no contexto escolar e não parece haver nada além disso. Você conhece o amigo pelos trabalhos em grupo e pelos intervalos e pelo recreio e não parece haver nada além disso. Mas você sabe que, ao fim da última aula, quando vocês se despedem e ele entra no carro da mãe e o carro some ao virar a esquina, o seu amigo continua sendo alguém, um alguém que você não conhece totalmente, em uma vida que você não tem acesso. E isso te enche de mistério e encanto e terror: conhecer a casa de um amigo é fazer crescer o seu próprio mundo, inserir no seu mundo o mundo do outro. Não é pouca coisa.
Este meu amigo, nós nos conhecemos na escola e logo nos aproximamos. O tema em comum deve ter sido a internet ou jogos de computador. Ele tinha um computador com internet Banda Larga, o que não era muito comum, enquanto eu usava internet discada. Isso me surpreendeu e encantou e, naturalmente, me deixou com um bocado de inveja. Para mim, ali estava ele, este meu amigo, com seu uniforme escolar, dividindo as manhãs de segunda a sexta comigo, para depois ir para a sua casa no carro com a mãe, e em casa ele ligaria o computador e se conectaria a internet a Banda Larga, e jogaria seus jogos e viveria uma vida sobre a qual eu nada sabia. Eu sentia crescer em mim o mistério, o encanto, o terror, um pouco de inveja e, quem sabe, um pouco de vazio. Talvez tenha sido por isso que, quando nos encontramos por acaso no meio da tarde, ou seja, fora do horário em que nossas vidas normalmente se cruzavam, em uma locadora em que ele jogava Playstation 2 e eu havia acabado de chegar também para jogar Playstation 2, e ele disse que já estava acabando o seu tempo e me perguntou se eu gostaria de ir até a casa dele para jogarmos no computador, eu senti vontade de chorar. Pode não parecer, mas eu me emociono com muitas coisas, as coisas assim, mais miúdas, como um convite de um amigo da escola para ir até a sua casa pela primeira vez. Eu senti vontade de chorar, mas não chorei. Eu disse que sim.
A casa dele não era muito longe, ele disse. Terminamos o tempo que ele havia colocado para jogar Playstation 2 e saímos da locadora. Eu estava inteiro preenchido pelo mistério, pelo encanto e pelo terror: eu seguia meu amigo pelas ruas da cidade em que nasci sem saber exatamente onde estávamos indo, e eu sentia o meu mundo se expandir, o que me fazia, ao mesmo tempo, parecer pequeninho e gigantesco. Como eu não sabia onde ele morava, ele aproveitou para fazer graça: a cada três ou quatro casas ele dizia “É aqui”, e se encaminhava para o portão como quem vai entrar, e quando eu ia em direção ao portão ele ria e dizia “É brincadeira, não é aqui”. Fez isso umas quatro ou cinco vezes, riu em todas elas e eu também. Tudo aquilo só adicionava ao mistério e ao encanto, enquanto diminuía o terror.
Quando finalmente chegamos, ele não disse “É brincadeira, não é aqui”. Pegou as chaves do bolso e destrancou o portão. Disse para eu tomar cuidado com as cachorras, que não mordiam, mas pulavam. Ele falava das cachorras na escola, era uma das poucas coisas que ele falava além do computador e da internet Banda Larga. Elas não mordiam, mesmo, e realmente pulavam, mas eu não me importei: acariciei as cabeças das duas vira-latas, que retribuíram o carinho com lambidas na minha mão. Conhecer as cachorras me encheu de alegria, como quem escuta falar de gente distante e, enfim, pode conhecê-las, gente de outro lugar, outro planeta, outra vida. Subimos as escadas e a mãe dele abriu a porta da sala. Ela me reconheceu da escola e disse “Olá, Gabriel, você por aqui!”, sorrindo, como ela sempre parecia sorrir. Eu sorri de volta. Meu amigo disse para a mãe que nos encontramos na locadora e que ele havia me convidado para jogarmos no computador. Ela disse que eu era bem vindo e perguntou se eu estava com fome, e eu olhei para o meu amigo, que respondeu por mim: “Estamos”.
Ao entrarmos na sala, tudo me atraía. Então era ali que o meu amigo vivia. Era ali que a sua vida fora da escola se desenvolvia: era aquela TV que ele assistia, naquele sofá ele se deitava, àquela mesa ele se sentava. Caminhamos pelo corredor até a cozinha e, por um instante, eu me senti como um invasor. É estranho estar fora da casa da gente, em que tudo é a nossa casa, simplesmente a nossa casa. Ali, ele se sentia assim, é claro, mas eu não. Ele estava a vontade, porque pertencia àquele lugar. Na cozinha, nós nos sentamos e a mãe dele abaixou o volume da TVzinha que ficava sobre a bancada. Disse que estava passando jornal, mas que não tinha nada de bom acontecendo. Sorriu de novo. Pegou suco na geladeira, pão, queijo, presunto, manteiga. Nós nos servimos. Eu agradeci.
Quando estávamos terminando de comer, o pai do meu amigo chegou. Estava no escritório, trabalhando. Eu não o conhecia. Ele também sorriu. Meu amigo me apresentou ao pai, nós nos cumprimentamos, ele quis saber o que iríamos fazer, meu amigo disse que iríamos jogar no computador, ele acenou com a cabeça e sentou a mesa. Então ali estávamos todos nós, meu amigo e seus pais, na sua cozinha. Senti vontade de chorar outra vez. Era bom estar ali. Era bom cruzar com outras vidas em seu mais singelo desenvolvimento banal.
Sentamos no computador e a internet ficava conectada o tempo todo. Isso me espantou, mas meu amigo parecia acostumado. Eu disse que só podia conectar em casa depois da meia-noite e ele disse que já fazia um tempo que a internet de lá era banda larga por causa do trabalho do pai. Perguntei o que o pai dele fazia. “Não sei”, ele respondeu. Ele abriu o The Sims. Jogamos. Fizemos uma piscina e tiramos a escada quando o boneco entrou. Ficamos com dó do boneco. Colocamos a escada de novo. Ele saiu. Cansamos de jogar The Sims. Jogamos Counter Strike 1.5. Assistimos alguns vídeos de skate no Google Vídeos - Best of Rodney Mullen, Tony Hawk 900, Skate Crashes - e depois entramos no assustador.com.br e vimos as fotos de fantasma, mas, apesar de nem eu, nem ele admitirmos que estávamos com medo, entramos num consenso de que era melhor fazer outra coisa.
Passamos a tarde assim, sem fazer grandes coisas. Fomos até o quintal. Jogamos a bola um para o outro. Brincamos com as cachorras. O céu começou a escurecer e eu não queria ir embora, mas sabia que precisava ir. Perguntei que horas eram. Nós entramos para olhar no relógio e eram quase seis da tarde. Eu disse que precisava ir. Ele disse que tudo bem. Eu me despedi da mãe dele, do pai, dele. Ele abriu o portão para mim, as cachorras latiram, e quando eu saí ele trancou o portão.
Voltei para casa inundado pelo mistério, pelo encanto e pelo terror. Tudo estava diferente. Tudo estava igual. Quando eu chegasse em casa, eu contaria à minha mãe que eu havia ido até a casa do meu amigo. Para ela não seria grande coisa, mas para mim foi.
Nem eu, nem esse amigo moramos na mesma cidade em que isso tudo aconteceu. A última vez que passei pela frente da sua antiga casa ela havia sido reformada, outra família mora por lá hoje em dia. A casa em que eu morava também é a casa de outras pessoas.
Nem meu amigo conhece a casa em que eu moro hoje, nem eu conheço a casa em que ele mora. Conheço mais do mundo, minha presença no mundo é mais ampla, mas ainda assim o mistério, o encanto e o terror resistem. Eu penso nesse meu amigo e em como ele está, em quem ele é para além do uniforme escolar e da casa em que ele cresceu e o tempo em que nossa amizade surgiu.
Eu penso que seria bom caminharmos até a sua casa, ou caminharmos até a minha casa. Eu penso que ainda seria engraçado se um de nós fingisse entrar em uma casa qualquer para, depois, dizer “É brincadeira, não é aqui”. Eu penso que nós ainda riríamos disso. Eu sei que eu riria.