Escrever é sempre tomar uma decisão. A realidade, shifting phantasmagoria, está composta por linhas cruzadas e contraditórias apontando nas mais diversas direções: a experiência real é sempre multifacetada. A escrita é, por imposição da linguagem, linear.
Escrever é tomar uma decisão: qual linha perseguir?
E tomar uma decisão é negar: qual linha abandonar?
Com isso em mente, podemos pensar na dificuldade que se é o ideal de representar as coisas como elas são. De acessar a realidade mesma, não-medida, de falar da vida, da realidade, da experiência no que lhe compõe essencialmente.
No poema In a Station of The Metro (Em uma estação do metrô), Ezra Pound escreve apenas dois versos que constituem uma única imagem:
The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough.
(a apariação dessas faces na multidão / pétalas em um galho molhado e negro)
Este é um poema imagético, em que Pound pretende apresentar a imagem em si, pura. Mas é possível apresentar a imagem em si, no que a constitui providencialmente? É possível superar o efeito do tempo, que a todo instante age sobre nós, que testemunhamos a imagem, e, por consequência, age também sobre a imagem, que passa a ser outra para nós, agora alterados?
Talvez toda representação seja do movimento e não do ser estacionário, porque o presente só existe dentro do discurso, ou, nas palavras de Benveniste, o presente é o tempo em que se fala. Tudo que veio antes é passado, tudo o que vem depois é futuro; o presente se renova a cada enunciação.
Por isso a representação da coisa em si é falha: a coisa em si desaparece e reaparece, sempre transformada. O que podemos é repetir Montaigne:
Je ne peins pas l’être. Je peins le passage: non un passage d’âge en autre, ou, comme dit le peuple, de sept en sept ans, mais de jour en jour, de minute en minute
(Não retrato o ser. Retrato a passagem: não a passagem de uma idade para outra ou, como dizem, uma passagem de sete em sete anos, mas o dia a dia, o minuto a minuto).
Essa passagem é sempre contraditória, porque nos contradizemos o tempo todo. Representar a passagem é acolher a contradição e reconhecer a incapacidade de fixar todas as dimensões.
Um amigo me mandou por acaso um verso de Manoel de Barros enquanto eu pensava nesse texto:
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
— Em Menino do mato
Penso que nós queremos, a todo tempo, significar justamente para limitar. Para limitarmos quem somos, para colocarmos sobre nossas vidas uma moldura que explique tudo e não deixe nada ao acaso. Queremos significar nossos gostos, nossos trejeitos, nossas relações. Queremos fazer parte de um grupo, queremos formar essa identidade coesa que nos dê sustentação:
Eu sou essa pessoa.
É assim que eu sou.
Queremos, porque é assustador pensar na constante contradição da vida real. É assustador de repente não nos reconhecermos: quem sou eu? É assustador ser quem somos, porque quem somos é isto, mas também aquilo: nós somos a própria contradição.
Hoje pensamos assim, amanhã pensamos assado e ontem só Deus sabe como nós pensávamos. Somos tudo isso: ontem, hoje e amanhã. Somos os sinais cruzados. O presente se renova a cada contradição.
É assustador, mas uma vez que façamos as pazes com nosso processo de autocontradição, é também libertador. A contradição é a certeza que nos constitui: nós fomos feitos para mudarmos de ideia, para nos alterarmos, para sermos sempre outros.
Temos todas as certezas do mundo e então encontramos alguém que põe essas certezas em ruínas. O que fazemos? Abraçamos nossas certezas e vamos às ruínas com elas? Ou abraçamos a contradição e mudamos de ideia, engajamos na mudança, abrimos nossas mentes para a entrada do outro?
A contradição é o princípio da existência. É a contradição que nos permite seguir em frente; é no bojo da contradição que podemos evoluir.
Oxalá que eu seja outro do que eu já fui. Oxalá que eu seja muitos ao mesmo tempo. Estou vivo, respiro, sinto: mudo a todo instante. Mudo e permaneço em estado de constante contradição.
Escrever é sempre tomar uma decisão. Escrever é significar. É fixar o movimento. A escrita sempre falhará em apreender a contradição de maneira integral, mas é possível tentar: a passagem, não o ser. Meu ideal de escrita impossível seria esse: fazer no texto brotar toda a contradição que nasce em mim. Poder dizer a forma como eu escrevo é quem eu sou de forma honesta: quem eu sou é tudo isso, inclusive o que ficou de fora do texto.
Somos seres contraditórios e nisso não há, paradoxalmente, contradição alguma. É a condição humana.