A domesticação do perigo e o Padre do Balão
Este texto foi originalmente publicado no Medium, mas ele me parece adequado para esse espaço. Se você já leu, segue a vida.
Eu penso muito no padre do balão. Não que eu pense muito nele de maneira contínua, que eu tenha algum tipo de obsessão pelo padre do balão, que eu mantenha diários sobre o padre do balão, que eu vá receber uma equipe de teve da Record na minha casa para falar sobre o padre do balão, e eles filmarão o meu quarto e as paredes serão cobertas de imagens do padre do balão, e a chamada será Homem viciado em padre do balão, ou Homem fanático pelo padre do balão, ou qualquer outro tipo de chamada que um programa da Record sobre alguém aficionado pelo padre do balão teria.
Eu penso muito no padre do balão de maneira esporádica. Geralmente não penso no padre do balão por si só, mas como parâmetro do pensamento principal. O padre do balão opera como um acessório na minha construção de raciocínios. Eu penso muito no padre do balão enquanto eu penso em outras coisas, e isso acontece pela simples razão de o padre do balão se encaixar nas mais diversas situações da vida cotidiana, ainda que nenhuma delas envolva um padre que resolve se amarrar em uma porção de balões de gás hélio para sair voando por aí, encontrando, finalmente, o destino fatal que uma empreitada como essa não poderia deixar de ter.
O padre do balão é, para mim, um elemento importante do discurso.
Vou tentar explicar.
Primeiro, o fim.
Existe um motivo pelo qual se começa pelo começo, desenvolve-se no meio e se encerra no fim.
Existe um motivo pelo qual as histórias se estruturam dessa maneira, a linearidade é um atributo importante para a compreensão e para a razão, e esse simples conceito do ponto A ao ponto B se expande para além do método narrativo, ocupando a matemática, a física, a química, a geografia, a história, a filosofia, etc, etc.
Muitos dos grandes escritores são firmes na construção dos seus enredos por meio dessa simples fórmula: começo, meio e fim. Assim, quando a história é bem escrita, há um engajamento firme do leitor, que deseja continuar lendo para saber o que vai acontecer no terço final — que, é claro, nem sempre representa um terço, as medidas são todas variáveis.
Por isso pode parecer estupidez da minha parte saltar logo para o final da história do padre do balão, mas eu não acho que seja.
Como eu disse, a história do padre do balão, apesar de ser uma história em si, não importa para mim como uma história em si, e sim como uma história em paralelo, a qual se pode recorrer para compreender outras histórias. Um elemento do discurso.
Enfim, por isso eu vou direto ao final: deu tudo errado.
O padre do balão primeiro desapareceu, as buscas foram infrutíferas e acabaram encerradas. Meses depois, metade do seu corpo foi encontrado. A outra metade, muito provavelmente, já não existia mais.
O fato de esse desfecho não ser, em absoluto, um desfecho inesperado serve para tirar o efeito de surpresa que a tática de guardar o melhor para o final geralmente tem. Não há surpresa alguma.
De tudo, surpresa é o que não houve.
E ainda assim o padre se amarrou nos balões.
Ainda assim.
Não se tem para todos os destinos possíveis resposta pronta. Nós estamos sempre tentando dar previsibilidade ao imprevisível, que é o dia de amanhã. Vamos fazendo planos, anotando horários na agenda, marcando retornos ao dentista, circulando no calendário um bloco de quinze dias de férias a serem deferidas pelo gestor, recolhendo um pouquinho do que sobra no mês para uma conta poupança. Dar previsibilidade ao imprevisível é uma ação da natureza humana, que, reconhecendo sua finitude e sua incompletude simultâneas, entra em compreensível desespero.
Mesmo que não se tenha para todos os destinos possíveis resposta pronta, fazemos o que é possível para limitarmos as opções.
Dentro dessa limitação de escopo, a natureza humana se expressa através de uma outra face, que é a fabricação do perigo. Domamos o perigo para nos servir na vida cotidiana. Calculamos o perigo e o domesticamos, feito um cachorro, feito um gato, feito um hamster que pode ou não ter uma parada cardíaca a qualquer momento.
Muitas coisas são perigosas. Sair na rua é perigoso, mas é um perigo calculado. Girar a chave para ligar o motor de um carro é perigoso, mas é um perigo calculado. São anos e anos e anos e anos de aperfeiçoamento, de estudo, de teste e falha e teste e falha e teste e falha, são parâmetros rígidos, são números depois de números, são regulamentos, especialistas, um oceano de relações complexas para que um carro saia da fábrica e possa ser utilizado nas ruas da cidade como se não fosse o que ele é: um conjunto de metal com enorme capacidade de causar mortes. Sob o motor as explosões acontecem continuamente, atrás do volante há uma pessoa, finita e incompleta. São dois elementos que, combinados, podem gerar enormes repercussões negativas. Ainda assim, todos os dias as pessoas entram em seus carros, giram a chave e saem das suas garagens.
Algumas não voltam. A maioria absoluta volta.
O perigo foi domesticado.
Quando uma engrenagem desse complexo esquema espana, a crise é em cascata e na tevê a montadora informa o recall imediato. Nas redes sociais, advogados se oferecem para ajuizar a ação competente contra a fabricante do veículo defeituoso e um primo de um conhecido seu certamente sofreu um grave acidente quando o parafuso x da boca y se soltou.
Eu compreendo o perigo. Compreendo o fascínio pelo perigo. Compreendo até mesmo o fascínio pelo perigo não-cotidiano, o perigo propositalmente elevado, para o qual, é de se supor, a recompensa também é elevada, feito uma simples aposta esportiva: maior o risco, maior o prêmio.
Eu compreendo. Eu passei a maior parte da minha infância em uma cidade que é conhecida como a capital nacional do paraquedismo. E paraquedismo nada mais é do que a atividade consistente em saltar de um avião (que está voando) com uma mochila nas costas, e dentro dessa mochila há, fundamentalmente, um monte de pano.
Esse monte de pano vai atrasar a queda o suficiente para ela não ser fatal. Esse atraso, que tira da queda o seu caráter fatal — negativo, por si só -, transforma esse perigo auto infligido em prazer. O limiar é tênue.
Para que esse ato de saltar pela porta aberta de um avião em pleno voo se tornasse uma atividade recorrente, anos e anos também se passaram. Cálculos foram feitos. Testes e falhas e testes e falhas. Com os devidos cálculos e devidas precauções, concluíram que uma atividade eminentemente perigosa, que é saltar a milhares de metros do chão, poderia ser uma atividade relativamente segura.
Um estalar de dedos. Perigo de morte. 99 ponto alguma coisa por cento de chance de não acontecer nada errado.
Sair de casa todo dia é perigoso. Ligar o carro é perigoso. Andar de bicicleta é perigoso. Frear só com o freio da frente em uma ladeira é perigoso. Saltar de paraquedas é perigoso.
Mas os perigos são domesticados. E quanto maior o perigo domesticado, maior a sua recompensa. A mente humana funciona de maneiras complexas e, ao mesmo tempo, é bastante simples de compreender, feito a linha que vai do ponto A para o ponto B.
Eu já saltei de paraquedas e pretendo saltar de novo, apesar de eu ter passado mal enquanto sobrevoávamos a cidade com o paraquedas aberto. Meu estômago embolou. Eu sabia dos riscos e sabia das medidas de segurança.
Um dia o padre do balão decidiu quebrar o recorde mundial, consistente em permanecer 19 horas em voo utilizando apenas balões de gás hélio. Ele tentou uma vez no começo de 2008, utilizando 600 balões, e voou 25 quilômetros entre uma cidade no Paraná e uma cidade na Argentina. Deu tudo certo, mas não quebrou recorde algum.
Para efeitos de comparação, Santos Dumont voou 60 metros a mais ou menos três metros de altura em um avião a motor, e depois voou 220 metros a seis metros de altura.
O nome de Dumont está na história. Está também nos mapas do Brasil, como nome de cidade.
Ele voou menos do que o padre do balão, mas o perigo que ele domesticou era maior, mais desafiador, porque ainda não havia sido enfrentado.
Quando o padre do balão decidiu quebrar o recorde mundial, ele já podia contar com a sabedoria que Dumont ajudou a formar. Mas isso não parece ter sido suficiente. O padre do balão também ficou na história, de alguma forma.
Todo dia alguém toma uma decisão. Às vezes não é a melhor das decisões.
Nos Estados Unidos, um homem conhecido como “Mad” Mike decidiu ir além. O homem, isto é, o homem enquanto humanidade, já pisou na lua, porque alguns homens pisaram. Esses passos dados por alguns homens, com célebre frase Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade, têm importância por definirem novos limites. Uma vez definidos novos limites, o campo de ação é alargado, e o próximo limite a ser quebrado é ainda mais violento, ainda mais inimaginável. “Mad” Mike, por exemplo, queria quebrar um novo limite.
O problema fundamental da sua intenção é que o limite que ele pretendia quebrar esbarrava na realidade.
Ele queria provar, utilizando um foguete caseiro, que a terra era plana.
A terra não é plana. É um limite intransponível, que é o limite do que é e do que não é.
Mas ele queria provar. E para isso ele construiu um foguete caseiro movido a vapor para subir um quilômetro e meio acima do mar, de onde, segundo ele, seria possível demonstrar que a terra possui um formato de disco voador.
Ciente disso, um canal de televisão acompanhou a história toda.
Nem sempre uma coisa tem a ver com a outra, mas nesse caso concreto eu vou arriscar dizer que uma coisa tem, sim, a ver com a outra: se um homem pretende subir em um foguete a vapor para ir até 1.5km acima do nível do mar, onde ele julga ser possível comprovar que a terra não é redonda, é importante, de antemão, reconhecer que esse homem não é o melhor sujeito para realizar tal empreitada.
É um caso em que o consequente invalida absolutamente o antecedente.
No entanto, ele seguiu em frente. E o canal acompanhou tudo.
Assim como na história do padre do balão, eu poderia ter começado pelo fim: ele morreu durante a tentativa.
A terra continua redonda.
Adelir Antônio de Carli
Eu, por minha vez, continuo pensando muito no padre do balão. Continuo pensando no padre do balão quando vejo tanta decisão sendo tomada todos os dias. Penso no padre do balão quando vejo uma multidão de gente nas ruas. Penso no padre do balão quando vejo o presidente da república fazendo arminha com a mão. Penso no padre do balão quando vejo um prédio desabar. Penso no padre do balão quando faz muito frio. Penso no padre do balão quando as ruas alagam.
Penso nesse fluxo de decisões e de perigos inerentes à existência. Penso no processo decisório de cada dia, que começa quando nos levantamos da cama. Penso nesse encadeamento lógico e quase pressuposto do cotidiano. Penso na fragilidade desse encadeamento.
E penso no padre do balão como o rompimento dessa lógica. Como um ponto fora da curva. Um ponto fora da curva que não é tão fora da curva assim.
Até o momento em que eu comecei a escrever esse texto, eu não sabia que o padre do balão tinha um nome. Claro, eu sabia que ele tinha um nome, porque ele era uma pessoa e toda pessoa tem um nome pelo qual ela se identifica. Mas eu não sabia que o padre do balão tinha um nome próprio, porque eu ignorava esse nome — ele é o padre que se amarrou nos balões, e isso diz tudo que é preciso dizer.
Mas não diz, diz?
O padre do balão se chamava Adelir Antônio de Carli. Ele não foi o primeiro padre a se envolver com balões, o que é bastante surpreendente. Bartolomeu de Gusmão — o padre voador — fez, no início do século 18, diversos experimentos aerostáticos. Vê-se que, pela data, muitos perigos ainda não estavam domesticados. Para mérito do padre voador, ele não saiu voando junto com os seus experimentos.
Adelir, antes de sair voando, era conhecido pela sua firme atividade em defesa dos direitos humanos. A sua decisão de quebrar o recorde mundial foi em parte motivada pela vontade de angariar fundos para sua pastoral em defesa dos motoristas da BR 277 — o Centro de Atendimento aos Caminhoneiros -, e em parte, é certo, pelo gosto humano pelo perigo.
Raramente as pessoas são feitas de uma coisa só. Ninguém é só o padre do balão.
Mas quando você se amarra em mil balões e alça voo, quase todo o resto é esquecido.
Adelir, o padre do balão, não tinha experiência com GPS, com voo, com navegação, com nada que envolva passar 19 horas com os pés afastados da terra. Adelir ainda assim decolou. Oito horas depois, fez uma ligação pedindo ajuda do resgate. Desapareceu. Metade dele foi encontrada, a outra não.
Na maioria dos dias a atitude do padre parece loucura. Em alguns dias, no entanto, logo pela manhãzinha, quando está bem frio e acordamos cinco minutos antes do despertador e não queremos pegar o celular, porque sabemos que já está na hora, mas preferimos ficar na negação do não-saber fabricado, o padre do balão parece uma pessoa perfeitamente sensata. - gsc