A imperfeita soma de todos os outros
Quem somos nós, senão com quem compartilhamos a vida?
Percebo em mim
traços seus
gostos seus
palavras suas
como se fossem minhas.
Reconheço você
em mim
e passo a gostar mais de quem eu sou.
Se eu me deixo ficar desatento, posso esquecer que em cada ato do meu cotidiano está contida uma multidão. Que nas palavras que eu falo, na forma como eu me movimento, me visto, penso, silencio eu nunca estou só — há sempre uma soma nem sempre visível de todos os outros.
Mas eu gosto de prestar atenção. Eu redobro o cuidado: é preciso estar atento e é preciso lembrar e é preciso perceber que não somos uma unidade. Pelo contrário. Somos a multiplicidade que, em nós, constitui, mediada pela agência, a singularidade. Do todo para a parte, da parte para o todo, num sem-fim dialético de ser construído e construir.
Tenho pensado bastante nisso. Tenho pensado bastante nisso depois de ver por aí nas redes sociais pulular um discurso, muitas vezes partindo de bocas progressistas, sobre a importância de nos afastarmos de amizades que nada somam. De nos aliarmos apenas àqueles que nos trazem algum retorno. Um discurso que reduz as relações humanas a lógica da produção: o que dá lucro, fica; o que dá prejuízo ou fica no zero a zero, sai. Por vezes esse discurso se alia a uma noção mística de energia. Normalizem encerrar amizades que não fazem mais sentido.
O que é uma amizade que não faz sentido?
É normal, e sempre foi, afastar-se de pessoas que, por algum motivo ou outro, dentre tantos possíveis numa existência complexa como a nossa, deixam de integrar as nossas rotinas. Amigos que se desentendem, colegas que se despedem ao mudarem de emprego, amantes que se desiludem.
Mas o que é o genérico não fazer sentido?
Qual o sentido, primeiro, da amizade?
Junto a esse discurso vem a carga utilitarista esquisita que atribui às amizades um propósito mensurável material, que quase nunca pode ser alcançado. Se for assim, pouquíssimas amizades fariam sentido e nós nunca nos relacionaremos com ninguém.
Recentemente encontrei, após um considerável período, amigos com quem mantenho contato sem proximidade física. Nós nos conhecemos há muitos anos e nós mudamos muito ao longo desses anos e essa mudança não nos afastou. Ficamos, na verdade, mais unidos e interessados uns nos outros. Testemunhamos a mudança um do outro e nos auxiliamos e nos apoiamos e nos formamos nessa comunhão. Quando enfim pudemos nos reencontrar, compartilhamos de horas proveitosas, agradáveis, satisfatórias, em que rimos e nos divertimos e nos amamos. Se eu me deixo ficar desatento, eu posso esquecer. Mas eu fiquei atento. Fiquei atento e não esqueci como eles são importantes para mim e como eu sou importante para eles e disso não saiu nenhum resultado material ou mensurável, mas uma profunda alegria de dividirmos nossos espíritos e mentes e corações.
Dividimos, mas somos distintos. Muito distintos. Quase incomparáveis. Mesmo assim, dividimos.
É uma amizade que não faz sentido?
É a única coisa que faz sentido.
Pense nisso: na música que você mais gosta. Na sua comida favorita. Na sua cidade favorita. No seu filme favorito. Na sua cor favorita. Na sua roupa favorita. No seu animal favorito. Na sua expressão favorita.
Pense nisso. E pense, imediatamente depois, em quem vem à sua mente quando você pensa nas suas coisas favoritas. Quem te apresentou a música que você ama. Com quem você dividiu sua comida favorita pela última vez. Com quem você visitou a sua cidade favorita. Com quem você assistiu ao seu filme favorito. Em quem pensa em você assim que vê a sua cor favorita em algum lugar. Em quem te elogiou quando você usou a sua roupa favorita. Em quem te marca no Instagram quando uma foto do seu animal favorito passa pelo feed. De que boca você ouviu a sua expressão favorita a primeira vez, antes de incorporá-la ao seu vocabulário.
Pense em todas as pessoas que estão atreladas às coisas que você julga serem indispensáveis para você.
São as coisas ou são as pessoas que são indispensáveis?
Pense nessas coisas isoladamente, apartadas de tudo. Do que elas valem?
Pense nas palavras. Pense na língua que você fala. Essas palavras chegaram até você não como elementos isolados e sem sentido: elas chegaram até você pela boca da sua mãe, do seu pai, da sua avó, avô, tio, tia, irmão, irmã, etc. Elas chegaram até você no seio da comunidade em que você cresceu. Elas chegaram até você no seio da vida que você viveu até aqui. Essa língua que você fala está habitada por todas as pessoas com quem você dialoga. Essa língua sem essas pessoas não é uma língua.
É só um amontado de sons e símbolos vazios. Qual o sentido?
Não há sentido algum — o sentido se dá no ato da vida.
Essas palavras te acompanharam e te formaram e elas chegaram até você pelo outro. Porque você não é um Adão: o primeiro a dizer. E chegaram ao outro por outro e por outro e por outro.
É uma corrente da qual você é um elo. Um elo irrepetível, mas que toma parte de todos os outros e do qual todos os outros tomam parte.
Do todo para a parte, da parte para o todo. O todo te forma e você, em reflexo, forma o todo. Você se constitui por esses outros e em troca você entrega a esses outros algo único, que é você. Único e múltiplo. Único e em movimento.
A imperfeita soma de todos os outros.
Nesses outros estão aqueles próximos, cujo amor sentimos na pele, como os meus amigos, como a mulher que amo e de quem recebo o amor, como a minha família. Mas nesses outros estão aqueles distantes, cuja lembrança tende a se esvanecer em nossas mentes. Aqueles outros com quem já não temos contato, com quem rompemos, com quem discutimos, com quem, talvez, tenhamos apenas nos desencontrado.
Porém, próximos ou distantes, esses outros são parte de nós. Carregamos em nós as marcas que eles deixaram em nossas vidas. Carregamos em nós a marca que aqueles que amamos deixaram e carregamos em nós as cicatrizes que aqueles que odiamos deixaram.
Somos compostos por essa contínua diferença e semelhança.
Talvez por isso, eu argumento, a literatura seja tão atrativa. Porque a literatura é, antes de mais nada, um exercício de concessão ao outro: concessão do nosso tempo, da nossa atenção, de nós mesmos.
Lemos a história do outro para entendê-lo ou, de repente, ainda que de maneira egoísta, para entendermos a nós mesmos. A literatura é a exposição do outro, inventado ou representado. Lemos uma história que não é nossa e, no ato de leitura e interpretação, ela passa a ser um pouco nossa também. Enquanto lemos vamos ajudando a construir esse outro do texto, a formá-lo, a preenchê-lo de sentido.
Ele deixa de ser um elemento vazio e passa a ser um ato da vida. Passa a ser construído na relação das consciências, no mundo real, em que tudo o que somos é sempre o que somos em face ao outro.
Concedemos a literatura a possibilidade de existir, um ato de fé. Assim podemos nos emocionar com histórias que não nos dizem respeito, a princípio, mas que muito nos dizem respeito. Assim podemos ler um romance como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1796, e nos perguntarmos: como é possível que eu, hoje, sinto tanto as coisas que esse protagonista de um passado distante também sentiu?
Do todo para a parte, da parte para o todo. A imperfeita soma de todas as coisas.
Sentimos, porque estamos relacionados. Mais de perto, mais de longe, mas relacionados. E quanto mais somos capazes de aceitar esse papel central do outro em nossas vidas — não como privação da agência, mas como integração de humanidade —, mais somos capazes de aceitar a nós próprios. A olharmos para nós com olhos mais generosos e a olharmos para o outro, seja quem for, com olhos menos rigorosos.
Tenho pensado muito nisso. Tenho pensado muito no trecho de abertura do último capítulo de Altos voos e quedas livres do Julian Barnes: quando perdemos alguém que conosco se relacionou profundamente, amorosamente, generosamente, “o que é levado embora é maior do que a soma do que havia. Isto pode não ser matematicamente possível; mas é emocionalmente possível”.
Pode não ser matematicamente possível, mas é emocionalmente possível. A imperfeita soma de todos os outros. É onde dois mais dois nunca são quatro. Nós nunca somos uma coisa só.
O indivíduo isolado não é o mesmo do indivíduo somado.
A soma faz crescer todos os envolvidos. Do todo para a parte, da parte para o todo.
Tenho pensado muito nisso, no dever ético que essa compreensão nos impõe. No dever ético do amor por quem nos cerca e quem cercamos. No dever ético perante o desconhecido, que também é parte, ainda que obscura, de nós. No equilíbrio entre egoísmo e altruísmo.
Para que, então, insistir na relação humana? Na amizade? No amor?
Porque o que há além disso é um belíssimo, impressionante, impenetrável castelo construído apenas de ilusões.
Se você me confunde, então você já é parte de mim, e eu não sou nada sem você. Não posso reunir o ‘nós’, exceto ao encontrar a maneira pela qual estou amarrada a ‘você’, ao tentar traduzir, e sim ao descobrir que minha própria língua deve partir-se e ceder se eu quiser conhecê-lo. Você é o que ganho com essa desorientação e perda. É assim que o humano passa a existir, repetidas vezes, como aquilo que ainda estamos para conhecer.
— Violência, luto, política. Judith Butler.
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