A última carta - Eu posso estar errado - Edição Nº38
Em 1997, Patrick Modiano, mais tarde laureado com o Nobel de Literatura, lançou o livro Dora Bruder, que começa como uma investigação sobre o paradeiro da jovem Dora Bruder, a partir de um anúncio antigo de um jornal de 31 de dezembro de 1941 e se mescla com a história do próprio Patrick Modiano, do seu pai judeu e de uma Paris marcada, pela presença e pela ausência, profundamente pela experiência nazista.
No anúncio estava escrito assim:
"Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris".
O livro é bom em si e traz questões de gênero e de forma narrativa na medida em que Modiano transforma a sua investigação em um romance entrelaçado por histórias distintas, da sua própria vida e de uma vida que ele não conheceu.
Mas foi um pequeno capítulo do livro que me chamou atenção e me pôs em um estado profundo de comoção. Na página 115, Modiano, já na parte final do livro, narra ter encontrado por acaso, numa livraria, uma carta - a última - de um judeu que estava em um comboio para os campos de concentração. A carta estava lá como um item qualquer, evidência de que o remetente e o destinatário nunca se conectaram pelo conteúdo do texto:
"A carta estava à venda, como qualquer autógrafo, o que quer dizer que o destinatário dela e seus familiares também estavam desaparecidos. Uma folha de papel muito fina, coberta dos dois lados com uma letra minúscula. Foi escrita do campo de Drancy por um certo Robert Tartakovsky. Soube que ele nasceu em Odessa, em 24 de novembro de 1902, e que manteve uma coluna de arte no jornal L'Illustration, antes da guerra. Transcrevo sua carta, nesta quarta-feira, 29 de janeiro de 1997, já passados cinquenta anos".
Eu li a carta, transcrita por Modiano, em 2022, passados mais de vinte e três anos dos cinquentas anos originais. Assim que terminei a leitura do capítulo, precisei parar com o livro por um tempo. Ler a carta de Robert Tartakovsky, ou seja, ler a carta que o destinatário não leu me pareceu indecente, ilegal, absurdo.
Marquei as páginas para a elas voltar mais tarde, que é o que eu faço agora.
A carta começou a ser escrita em 19 de junho de 1942 e terminou no dia seguinte, sendo endereçada a SENHORA TARTAKOVSKY.
Robert fala da sua chamada para a partida rumo ao campo de concentração e, primeiro, trata de questões burocráticas. "A única coisa que me incomoda, e muito, são as roupas que pedi há muito tempo, e que não chegaram. Fui obrigado a mandar uma encomenda com roupas. Haverá tempo de receber o que espero?"
Ciente da gravidade da situação e testemunha do medo dos seus companheiros, o remetente pensa nas questões cotidianas, de uma vida que costumava viver, e pede que ninguém, especialmente sua mãe, fique muito preocupado, pois ele fará "o possível para voltar são e salvo".
Segue falando de detalhes da situação e do que seria pertinente receber, se possível, sempre atento para não atribular sua família e rogando cautela para que ninguém acabe preso como ele. Na continuação do dia seguinte, ele começa dizendo que recebeu a mala no dia anterior e agradece muitíssimo.
É como uma vitória. Como não, é uma vitória. Com a mala, ele avisa à família de que teme uma partida precipitada, mas pede que fiquem calmas:
"Vocês estarão em meus pensamentos".
E em seguida ele comprova sua afirmação, pedindo que ajudem sua mãe, "sem que isso as obrigue a negligenciarem suas próprias coisas, quero dizer".
A dignidade desse trecho me fez vacilar. Na iminência da fatalidade, que ele ainda não poderia saber, mas apenas pressentir, tenta garantir algum conforto à sua família e evitar transtornos. Sua despedida é um testemunho desse caráter:
"Penso na minha mãe, em vocês. Em todos os meus companheiros que, carinhosamente, me ajudaram a ficar em liberdade. Obrigado de todo coração àqueles que me permitiram 'passar o inverno'. Vou deixar esta carta interrompida. É preciso que prepare a mala. Até depois. Caneta e relógio para Marthe, seja o que for que diga minha mãe, esta nota para o caso de eu não poder continuar. Mamãe querida, e vocês minhas três queridas, eu as abraço com emoção. Sejam corajosas. Até depois, são 7 horas".
Vou deixar esta carta interrompida, e esta carta foi a sua última. O até depois, repetido duas vezes, talvez como prece e despedida, não se realizou.
Sem nenhum conhecimento mais profundo de quem foi o Robert que assinou essa carta, de quem foi Marthe, de quem foram suas familiares e sua mãe, eu me senti intrometido numa relação íntima, afetuosa e privada, rompida pela tragédia da guerra. Eu me senti como um cúmplice das forças nazistas ao pôr meus olhos na carta interrompida de Robert Tartakovsky, porque meus olhos não eram os olhos de destino - SENHORA TARTAKOVSKY -, e os olhos de destino não puderam receber as palavras do remetente.
Em algum momento entre a finalização interrompida da carta de Robert e a sua remessa para o destino, tanto o autor quanto os destinatários se perderam para sempre e a carta acabou em uma livraria qualquer, como um item de uma memória entrecortada.
A sensação é mesmo essa: de interrupção. De que as coisas seguiam o seu fluxo comum - isto é, da vida, de pensar no dia de amanhã, de planejar o futuro, de pedir roupas e trocados para passar a semana, de escrever colunas de artes - para, então, terem esse fluxo interrompido de maneira definitiva.
O que restou foi a carta não recebida, o elo de uma vez por todas rompido.
Até depois, são 7 horas, ele termina a carta.
Eu penso em tudo o que não foi dito. Eu penso em tudo o que foi dito, mas não foi ouvido. Eu penso em tudo o que foi dito, ouvido, mas não foi compreendido.
Nas palavras todas que foram escritas, mas jamais chegaram aos seus destinos. Na injustiça da interrupção e na absoluta irrelevância dessa injustiça.
A literatura após a shoah foi inundada pelos testemunhos oriundos do trauma causado pelo nazismo. É isto um homem?, de Primo Levi, é o maior expoente dessa produção literária. Primo Levi repetiu diversas vezes que, aos sobreviventes, era obrigado dizer o que aqueles que não sobreviveram jamais poderão professar. Ao mesmo tempo, ele percebeu que, preso no paradoxo de ser obrigado a dizer na medida em que os demais tinham perdido suas vozes, os ouvintes se negavam, com o tempo, a escutar, porque não queriam partilhar da experiência do genocídio.
Só se testemunha porque se viveu, porque outros morreram.
Só se lê a carta de Robert Tartakovsky por não ter sido vítima daquilo que o matou. O testemunho involuntário de Robert, na carta destinada à sua família, vira um documento histórico que possui uma voz em si, mas que é incapaz de dar voz ao seu enunciador.
A existência desta carta é, ao mesmo tempo, a persistência de Robert Tartakovsky e a prova do seu desaparecimento. É e não é. É testemunho e é interrupção.
Penso na minha mãe, em vocês. Em todos os meus companheiros que, carinhosamente, me ajudaram a ficar em liberdade. Obrigado de todo coração àqueles que me permitiram 'passar o inverno'. Vou deixar esta carta interrompida. É preciso que prepare a mala. Até depois.
A dignidade que ele transborda no fim da sua última carta contrasta com a indignidade a qual ele foi submetido. A esperança que ele transborda contrasta com a desesperança que foi alastrada na Segunda Guerra.
O seu desaparecimento parece absurdo, ilógico, inaceitável diante dessa carta de 1942. É inaceitável que ela não tenha chegado até o destinatário, é inaceitável que tanto Robert quanto os familiares quem ele dirigiu sua última carta tenham tido suas vidas interrompidas pelo genocídio judaico.
Parece absurdo, ilógico e inaceitável, e é absurdo, ilógico e inaceitável, e também é real. Na mesma medida. Na mesma medida do absurdo, do ilógico e do inaceitável.
Mamãe querida, e vocês minhas três queridas, eu as abraço com emoção. Sejam corajosas. Até depois, são 7 horas.
Terminei a leitura estremecido, atravessado pela interrupção do ponto final.
Sejam corajosas.
Não é um pedido, é um imperativo.
Até depois, são 7 horas.