Amanhã tem excursão - se o tempo não fechar
Quando na infância, você já se deparou alguma vez com a noite tomando a forma de um inimigo mortal, uma espécie de muralha entre você e a felicidade, que virá junto com o sol pela manhã, e a noite insiste em se pôr no meio, em impedir o seu sono, em se prolongar indefinidamente?
Eu já.
Várias vezes.
Primeiro, porque eu sofro com uma insônia terrível já há muitos anos e os primeiros episódios começaram a acontecer no fim da infância e no começo da adolescência.
Segundo, e talvez o segundo ponto esteja relacionado com o primeiro, como é muito comum, porque eu sou ansioso. Ansioso no sentido de ficar paralisado pela ansiedade e sentir as batidas do meu coração dominar todo o meu corpo, cada músculo do meu corpo, em especial quando eu não consigo dormir. Nesse momento a ansiedade se maximiza e minha cabeça passa a funcionar em um ritmo alucinante.
Então as noites imediatamente anteriores aos dias de excursão (da escola, em geral, mas não só) eram terríveis para mim. O misto de animação incontrolável pela experiência distinta - sair da sala de aula, que eu sempre tive enorme dificuldade em me adaptar; viajar para outra cidade; entrar em um ônibus com meus amigos e colegas; viver algo até então não vivido - e ansiedade e temor por essa mesma experiência me punham num estado de nervos gigantesco. Eu queria dormir o mais rápido possível, é claro, porque se eu dormisse a noite passaria assim, quase que literalmente num piscar de olhos, e ao abrir os olhos outra vez já seria um novo dia, e eu estaria pronto. O problema é que eu não conseguia dormir. Quase nunca conseguia dormir. Eu pensava na cama: quem me dera fechar os olhos assim e puff, dormir, acordar só amanhã.
Talvez lá pelas quatro ou cinco da manhã eu dormisse devido a força da exaustão, sendo acordado pouco depois pelo despertador (não um despertador físico, cuja função é ser despertador, mas pela minha mãe, que, entre tantas outras funções exercidas durante a vida, por muito tempo foi meu despertador oficial). Eu ficava feliz, óbvio, porque tinha chegado o grande dia - qualquer dia -, mas também tinha dificuldade para manter os olhos abertos.
Uma dessas excursões foi para o Playcenter, o falecido parque. Ir para o Playcenter era um evento único na minha vida. Eu ouvia histórias sobre o Playcenter. Sobre os brinquedos. Sobre a noite do terror. Eu tinha medo e curiosidade. Ir para o Playcenter daria a mim, um moleque tonto e tímido, o símbolo distintivo do conhecimento - o selo Daqueles Que Foram Ao Playcenter. Não foi uma excursão da escola, mas sim de uma agência de viagens que organizou o ônibus e a compra das entradas para o parque. Minha irmã queria ir, mas para ela ir eu precisaria ir junto (nós temos oito anos de diferença, eu sou mais novo), porque eu enchi o saco pra caralho da minha mãe.
Vencida, minha irmã aceitou. Eu contava os dias para a viagem. Contava no calendário. Dia após dia. Faltam três semanas. Faltam duas semanas. Falta uma semana. Faltam três dias.
Falta um dia.
Eu poderia explodir por não caber em mim mesmo na noite anterior.
O céu, por sua vez, também parecia a ponto de explodir, com raios e trovões.
"Sim, claro, se amanhã fizer bom tempo", disse a Sra. Ramsay. "Mas terão de acordar com os galos", acrescentou.
Este é o primeiro parágrafo de Ao Farol, de Virginia Woolf. A Sra. Ramsay, personagem central do romance, fala para o filho que sim, claro, se amanhã fizer bom tempo eles irão ao farol. Essa é a condição: havendo bom tempo, na manhã seguinte, bem cedo - na hora em que os galos acordam -, eles partirão para a aventura que é ir até o farol.
Ao filho essas palavras transmitiam uma alegria extraordinária, como se a questão estivesse resolvida, a expedição estivesse destinada a se realizar, e a maravilha pela qual tinha ansiado por anos a fio parecesse estar, após a escuridão de uma noite e o velejar de um dia, ao alcance de uma mão.
Às vezes, quando eu penso na minha mãe, eu penso nisso - na questão resolvida, a expedição destinada a se realizar. Eu penso nisso, claro, sem pensar no romance em si, que eu li pela primeira vez há dois anos. Mas o que eu penso é nessa força quase mística que a palavra materna - ou paterna, a depender do caso - tem, quando entonada adequadamente, de parecer prevalecer sobre a realidade.
O que eu mais desejava na infância e em parte da adolescência era algo dessa força, quer dizer: alcançar a segurança para fazer previsões definitivas. Enquanto criança, menino mesmo, moleque, tudo o que eu dizia ou pensava ou fazia parecia carecer de peso, de confiança, de valor. Na minha inocência infantil e abobada, eu acreditava que aos adultos era fornecido algum tipo especial de conhecimento, de maturidade que permitia a eles saber o que estavam fazendo.
Bem, aos 27 eu já sei não ser esse o caso.
Mas definitivamente parecia ser o caso da minha mãe, que carregava em cada palavra o peso do mundo todo - para o bem, para o mal, para tudo.
Por isso eu, querendo chorar mas engolindo o choro, perguntei para ela dezena de vezes na noite anterior a excursão para o Playcenter se ia chover. O céu estava a ponto de desabar. Se chovesse, a viagem estava ameaçada. Eu perguntava e perguntava e perguntava e ela me dizia a única coisa que poderia ser dita:
- Não sei, filho. Vai deitar que quando você acordar nós vemos.
Se ao menos fosse tão simples.
Durante a madrugada que passei em claro eu ouvi o som da chuva. Pela manhã, minha irmã ligou para a agência de viagens e eles confirmaram que a excursão seria adiada.
Odiei a chuva e a noite e todas as coisas sobre as quais eu não possuía controle algum.
Nada estava resolvido. A maravilha pela qual eu tinha ansiado uma vida toda estava mais distante do que nunca.
Não me lembro quanto tempo depois a viagem efetivamente aconteceu. Mas ela aconteceu.
No fim, fomos eu, minha irmã e meu primo, que é dois anos mais velho do que eu. Passamos o dia indo em brinquedos e comendo lanches superfaturados, fomos no Castelo dos Horrores e eu quase me mijei lá dentro de tanto medo, e pintamos o rosto - meu primo e eu - com os maquiadores profissionais do parque.
Escolhemos a maquiagem do Darth Maul (a mais barata). Em algum lugar eu devo ter uma foto nossa com os rostos pintados. Foi ótimo. Quando voltamos para casa e eu fui dormir e não conseguia de jeito nenhum tirar a tinta do rosto, não foi tão ótimo assim. Aquela merda vermelha deve ter ficado no meu couro cabeludo por meses e os copinhos que usaram para fazer o chifre arrancou um tucho de cabelo quando puxei.
Depois que tudo acabou, eu pouco pensei naquilo. Nada parecia mais tão grande quanto havia sido antes.
Eu não faço a menor ideia de qual foi a última excursão da qual eu participei. Talvez em algum momento do ensino fundamental.
A noite, contudo, continua representando para mim enormes perigos. Dormir nem sempre é fácil, e esperar o dia seguinte pode ser insuportável.
Por exemplo:
quando eu estava esperando o resultado da fuvest e acordei e abri o site e baixei a lista e não achei meu nome - não passei;
quando eu estava esperando o resultado da segunda chamada da fuvest e acordei e abri o site e baixei a lista e não achei meu nome - não passei;
quando eu estava esperando o resultado da terceira chamada da fuvest e acordei e abri o site e baixei a lista e não achei meu nome - não passei;
quando eu estava esperando o resultado da quarta chamada da fuvest e acordei e abri o site e baixei a lista e achei o eu nome - esse dia foi bom.
O tempo passou e eu aprendi a lidar um pouco, só um pouco melhor com a minha ansiedade. Eu controlo melhor meus sentimentos e reações. O meu sono, porém, é sempre o principal afetado em qualquer mudança que aconteça na minha vida.
Ontem, dia 8 de novembro, era a data de divulgação da terceira fase (de quatro) do processo seletivo da pós-graduação do Departamento de Teoria Literária da USP. Eu estou participando do processo seletivo.
Eu passei na primeira fase, que é uma prova de idiomas, e passei na segunda fase, que é uma prova específica. Fiquei ansioso nas duas, mas não tão ansioso quanto pelo resultado da terceira fase, que é a análise do projeto de pesquisa.
A parte boa de ficar mais velho é que você tem outras obrigações, então às vezes é possível esquecer de coisas importantes. Quando eu fui dormir no dia 7 eu não me lembrava que no dia seguinte sairia o resultado da análise do projeto.
Eu só me lembrei que o resultado ia ser divulgado no dia 8 durante a manhã, e desde o momento em que eu me lembrei disso eu não fui capaz de pensar em outra coisa. Passei o dia dando F5 no site. A previsão era para sair às 18 horas, mas eu continuei atualizando a página na esperança de ser publicado antes.
Lá pelas 17 e pouco a página atualizou e um link surgiu com a mensagem RESULTADO DAS ANÁLISES DOS PROJETOS.
Eu cliquei sobre o link e o PDF começou a carregar.
O bonito e o terrível do dia de amanhã é isso:
é que amanhã ainda vai chegar, mas primeiro é preciso passar pela noite.
É TUDO NOSSO NADA DELES, DEPOIS DE NÓIS É NÓIS DE NOVO.
Valeu. - gsc