Às vezes, a zona de conforto é confortável por um bom motivo
Ou: a gente é feito de carne, não de aço.
"Ele encheu o cu de folha", um amigo disse sobre a situação. Eu nunca tinha ouvido a expressão "encher o cu de folha", mas ela me pareceu, de imediato, perfeitamente adequada para o momento. Esse amigo, que é também do interior paulista, só que de outra região, explicou que por lá usam essa expressão para quando o fulano toma uma decisão precipitada e, no fim, acaba tomando no cu.
Ficando com o cu cheio de folha.
Se você pesquisar no Google, ele vai te apontar para o Dicionário Informal com a definição de "encher o cu de foia".
Mas então. Um colega nosso do Tribunal, um senhor que está mais perto da aposentadoria do que do começo da carreira (e isso é dizer muito, considerando como é difícil se aposentar), foi nomeado para um cargo em outro lugar, em um gabinete de desembargador.
Sobre isso, é preciso explicar algumas coisas, começando pelo começo.
Para quem não trabalha no Tribunal - ou no serviço público -, é importante entender que, apesar de haver estabilidade, isso não impede a existência de lugares problemáticos para se trabalhar. Ainda que você seja estável, lidar com pessoas desagradáveis todos os dias pode ficar insuportável. Como em quase todo emprego, o serviço público está infestado de gente em posição de chefia sem a devida capacidade para exercer a gerência.
Não é o caso de onde eu trabalho atualmente - e onde esse amigo que me falou a expressão "encheu o cu de folha" e onde nosso colega estavam até ser nomeado para outro lugar. Onde eu trabalho é bem tranquilo, e achar um lugar tranquilo é meio caminho andado para a felicidade.
Nisso vamos para o segundo ponto da explicação. Mesmo dentro do Tribunal, você pode ser nomeado para posições distintas, em comissão - o famoso cargo de confiança. Essa nomeação vem com um incremento salarial, só que não é de graça. Via de regra há mais trabalho e, enquanto comissionado, você pode ser demitido (não do Tribunal, mas do cargo em comissão, perdendo o adicional). Se é ruim trabalhar com gente problemática quando eles não podem te demitir, é pior ainda trabalhar com gente problemática quando eles podem te demitir.
Chegamos no nosso querido colega, o senhor simpático. Esse senhor adora conversar, é boa gente, trabalhador. Seu assunto favorito é futebol, mas ele não assiste jogo nenhum. É incrível. Ele parecia ter tudo mais ou menos organizado na vida. O filho prestes a se formar em Direito por uma boa faculdade, emprego estável, dezenas de plantões realizados com a devida remuneração. Para ele, contudo, parecia faltar algo. Ele não se sentia completo. Queria se desafiar.
Não queria ficar muito confortável.
Assim ele conseguiu uma entrevista com uma desembargadora, que o nomeou para trabalhar com ela no gabinete. A nomeação levou meses para ser publicada, porque para alguém sair de um lugar, outra pessoa precisa ocupar esse espaço, e o Tribunal está com uma política de contenção de gastos, impedindo virtualmente todas as movimentações de funcionários que tenham impacto orçamentário. A desembargadora, por outro lado, estava com um funcionário a menos, então meses depois alguém mexeu uns pauzinhos e a nomeação do nosso colega saiu no diário oficial.
Ele estava contente.
Nós o parabenizamos.
Eu já trabalhei em gabinete por mais de um ano. Não foi uma boa experiência, pessoalmente. Torci para que para ele fosse diferente.
Pois bem.
Eis como eu dramatizo o primeiro dia dele no gabinete:
J. (de José, que não é o nome dele, mas é um ótimo nome genérico para funcionário público) acordou cedo na Zona Leste de São Paulo. Era o primeiro dia da sua nova vida. Escovou os dentes, preparou o café, deu bom dia para o filho, que ainda não tinha ido dormir. Beijou a esposa. Depois se alimentar, foi para o quarto e vestiu sua melhor camisa, sua melhor calça. Escovou os dentes outra vez. Verificou como estava no espelho.
Disse para o seu reflexo: você consegue.
Meteu-se no transporte público paulistano, avançou pelas estações de metrô até descer na Sé, e da Sé foi para a Conde de Sarzedas, onde ficam os gabinetes dos desembargadores do Tribunal de Justiça. Apresentou-se na recepção, pegou seu crachá magnético temporário, agradeceu, foi para o andar do seu novo emprego. Viu-se no espelho e repetiu, agora só para si, silencioso: você consegue, camarada.
Bateu na porta do gabinete, entrou, cumprimentou todo mundo. A funcionária que estava de saída o recebeu com pressa e ensinou tudo em três horas, saindo antes do almoço. Ele não entendeu nada. Não teve outra opção. Ela falava, ele ouvia, anotava, e ela passava para o próximo ponto. Não era nada do que ele esperava ou conhecia. Os vários anos no Tribunal não o tinham preparado para aquilo. Quando a desembargadora chegou e fez várias perguntas, ele não tinha nenhuma resposta. Ficou nervoso. A desembargadora parecia contrariada, mas falou de amenidades: logo você pega o jeito.
Ele não achou que pegaria. Trabalhou até as 16, todos estavam saindo mais cedo devido a pandemia. Aproveitou o horário para passar no antigo posto de trabalho, ali perto. Foi caminhando e pensando. Caminhando e pensando.
Chegando lá, ao encontrar a antiga chefe, não conseguiu mentir:
Eu cometi um grande equívoco.
"Ele encheu o cu de folha", um amigo disse sobre a situação. Claro, eu posso estar exagerando, como eu sempre exagero. É o que eu faço. Usar situações cotidianas e as exacerbar para a construção do sentido é parte do meu ofício. O cerne, porém, é real.
Estamos todos sendo convencidos, a todo o tempo, que devemos estar desconfortáveis para crescer. É o mantra do coach, das postagens do Instagram: "o que você fez hoje pelo seu futuro?" / "quando você sairá da sua zona de conforto para conquistar novos horizontes?".
É verdade, em muitas situações nós precisamos vencer o desconforto para sair do lugar. Este é um mundo complicado, de relações complicadas, e a inércia raramente conduz aos nossos desejos.
Na Aeronáutica a frase é no fogo forte que se forja o aço bom é muito repetida. Ela surge nos momentos de maior pressão, física ou psicológica. É um motivacional. Só que é um motivacional idiota.
Eu não sou feito de aço.
Mas por trás desse discurso há algo maior, que é a redução do indivíduo a uma máquina de produzir resultados. Nunca estamos satisfeitos. Nunca estamos contentes. Sempre nos falta algo - nos falta, porque estão dizendo que falta, porque criam novas necessidades para que nós continuemos a correr e a correr e a correr e a correr.
Eu tinha um hamster na infância, que parecia um rato de esgoto, e ele corria o dia inteiro na rodinha da gaiola. Um dia ele infartou e eu precisei enterrá-lo na grama perto de casa, usando uma colher de cozinha para cavar.
Não somos hamsters, mas às vezes.
Estamos convencidos, dia após dia, de que nosso valor é medido em termos monetários, apesar de o dinheiro ser uma invenção muito posterior ao humano. Esse colega parece ter internalizado tão profundamente a lógica da produção que não consegue, no disfarce do não querer - a vontade como máscara -, descansar. Ficar em conforto.
Dinheiro é um problema, sua ausência é mais problema ainda.
Na dúvida, é preciso recorrer ao filósofo contemporâneo Gustavo de Nikiti, na obra Que Nem O Meu Cachorro:
O cochilo da tarde é meu xodó do momento
Nem quica; a vida é tombo em pista de cimento
Black Alien já vai tarde, já passou o seu momento
Significa que o cidadão não tem conhecimento
Da força, da fé, da febre e da fibra
Nessas portas meto o pé, enquanto a galera vibra
Me preocupa é o celular que vibra ao lado do meu saco
O resto todo que dá câncer eu já vou lançar no vácuo
Ingrato! Não é o que tu fala que diz quem tu és
Come e cospe no prato, depois vem dizer: Jah bless
Se custar a minha paz, já custou caro demais
Pela-sacos, aqui, jaz; Black Alien, aqui, jazz
É foda. Se você souber de alguém procurando um bom redator, para os mais diversos fins, este que vos escreve está com agenda aberta - eu também preciso encher meu cu de folha, porque ele já está cheio de dívida.
Merda.
Enfim. É isso.
Jah bless. - gsc