Colocando anilhas na barra - Eu posso estar errado - Edição Nº40
A descoberta do corpo
No começo desse mês de novembro, a psiquiatra e escritora Natalia Timerman escreveu em sua coluna o texto de título "Espelho era sinônimo de angústia: a gordofobia começa no próprio corpo". O parágrafo que abre o texto é assim:
Fui uma criança gorda o suficiente para que as outras crianças notassem. Antes ainda: fui uma criança gorda o suficiente para que minha mãe notasse.
O texto da Timerman me lembrou a primeira vez em que eu notei o meu próprio corpo não apenas como uma extensão esquelética da minha existência, por meio da qual eu podia brincar, tocar, correr, sentir, mas como uma figura estética apta a ser notada pelos demais e, a partir de então, por mim. A primeira vez em que eu notei o meu próprio corpo pela vergonha e odiei viver dentro dele.
Eu estava na terceira ou quarta série. Fui uma criança magra por algum tempo, mas o consumo desenfreado de refrigerante na minha casa me fez ganhar peso rápido. De uma criança magra e comprida, fui para uma criança gorda e comprida. Eu não sabia a diferença entre um e outro, por ser irrelevante para mim. Até que uma professora me parou no corredor da escola e disse:
Nossa, precisa de uma camiseta maior, Gabriel, porque essa está marcando sua tetinha.
Essa foi a primeira vez que eu notei o meu corpo para além de um instrumento da minha existência. Foi a primeira vez que eu senti o meu corpo como um fardo.
Não atribuo a essa fala a relação conflituosa que carreguei com o meu corpo por grande parte da minha vida, mas é nessa fala que eu fixo a primeira lembrança desse conflito.
Aos treze anos, na sétima série, eu pesava 85kg. Já mais alto do que a grande maioria dos meus colegas, o meu peso me transformava em um garoto corpulento, de braços largos, cara redonda. Eu odiava a forma que o meu corpo tinha. Então já aos treze anos eu, que cresci com a popularização da internet, descobri por meio de uma pesquisa no Google uma dieta restritiva regada a proteína e leite desnatado e segui essa dieta rigorosamente durante quase um ano. Junto com a dieta, eu passei a correr e a participar de todas as aulas da academia que envolviam práticas de cardio extenuante - jump, bike, o que quer que fosse.
Em um ano eu fui de 85kg para 60kg. No fim da adolescência, com quase 1.90m, eu era um garoto magérrimo.
E eu ainda odiava a forma do meu corpo. Odiava que o meu corpo não parecia capaz de fazer o que os outros corpos faziam, aquilo que eu via na internet, aquilo que eu desejava ser capaz de fazer - ser esbelto, musculoso, um atleta competente no esporte que eu adorava.
Só recentemente, chegando aos 30 anos, eu firmei um tratado de paz com o meu corpo, após redimensionar e restabelecer minha relação com a prática esportiva - do basquete, especificamente - e com a prática de atividades físicas de maneira consistente e reiterada.
Passei vários dias pensando em como escrever sobre o assunto, como falar do impacto da atividade física, do treino, da reiteração da mesma prática na nossa relação com nossos corpos e na nossa relação com nós mesmos.
A única forma que encontrei é falando sobre a minha experiência, que não pretendo apresentar como universal, mas é a única sobre a qual eu posso falar de maneira honesta.
Essa é a história que eu quero contar.
Potencial é a muleta dos covardes
Depois que o Kobe Bryant morreu, eu escrevi um texto chamado Não há garantias. O texto era sobre a morte do Kobe, mas era em um sentido mais amplo um texto sobre a minha relação com o basquetebol:
Quando criança eu era maior do que a maioria dos meus colegas e isso naturalmente me levou ao basquete. Primeiro treinávamos no ginásio de Boituva, com o piso de madeira brilhante e as cestas altas. Eu não era bom e ficava frustrado em todo treino.
Um pouco mais tarde, depois que esses treinos acabaram, a cidade estava novamente formando um time. O primeiro treino foi na quadra de concreto rachado da escola em que eu estudava. Os meninos mais velhos (eu tinha doze ou treze anos) me mandaram para o outro lado da quadra, onde as crianças menores que não sabiam jogar brincavam e eu, com vontade de chorar, fui para lá batendo forte a bola no chão. Após alguns minutos o treinador me chamou e disse que eu podia ficar com os meninos mais velhos. Ninguém falou nada.
Eu não era bom e ficava frustrado.
Os treinos saíram do concreto rachado da escola para o salão de eventos da cidade, em que uma tabela de plástico ridícula foi colocada para podermos jogar. Meu joelho já doía e eu terminava todo treino irritado, porque eu não conseguia fazer o que eu queria.
A minha relação com a prática esportiva e a minha relação com o meu próprio corpo são indissociáveis. Primeiro, eu tinha vergonha do aspecto estético do meu corpo. Depois, eu passei a me irritar com o meu corpo enquanto instrumento.
Cresci sob a ideia de que era melhor um potencial não realizado por falta de tentativa do que um esforço não recompensado pelo sucesso. Adotei essa postura em diversas áreas da minha vida. Eu gostava de jogar basquete, mas eu não era bom o suficiente - não naturalmente, pelo menos. Então eu decidi não treinar, não me dedicar, fazer por fazer.
Eu descobri que eu poderia utilizar essa muleta sempre que fosse pertinente. Se eu não me dedicasse aos estudos e fosse mal nas provas, que mal havia? Eu não tentei, então eu não falhei. Se eu não me dedicasse aos treinos e fosse mal nos jogos, que mal havia? Eu não tentei, então eu não falhei.
Passei a acreditar piamente que eu tinha todo o potencial do mundo em mim, mas que eu não queria explorá-lo. A verdade é que eu tinha um medo enorme de essa ilusão de potencial ser destruída pela realidade.
Talvez eu viesse a treinar muito e ainda assim falhasse.
Quando eu fui dos 85kg para os 60kg, eu não estava jogando basquete. Eu jogava futebol, como goleiro. Eu queria ser bom. Eu tentava ser bom. Eu me dedicava aos treinos. Além da dieta restritiva, dos treinos na academia, no campo eu fazia o possível para melhorar. Só eu que eu melhorava muito pouco. Muito pouco de cada vez, num ritmo insuficiente para o sucesso estrondoso que eu queria ter. E eu me frustrava. Em um dos treinos, após mais de um ano de treino, eu quebrei o dedão ao defender uma bola.
Foi a minha desculpa perfeita para desistir.
Mas com o basquete não foi assim. O basquete continuou voltando para a minha vida. Depois de abandonar os treinos da equipe municipal, eu fiquei um bom tempo sem jogar. Quando entrei na EPCAr, a escola preparatória de cadetes do ar, a opção era ou integrar uma equipe esportiva ou ser da suga, ou o grupo que não fazia nenhum esporte e, no horário da educação física (todos os dias, duas horas por dia), ficava correndo de lá para cá.
Participei da seletiva do time de basquete e passei. Meu corpo ainda sabia se movimentar, mas eu não era bom. E sabendo que eu não era bom, eu me dedicava o mínimo possível aos treinos. Eu queria melhorar, mas eu não queria pôr meu coração naquilo e não ter resultado. Eu treinava, mas sem foco. Eu treinava, mas querendo ir embora. Duas horas por dia, cinco dias por semana. E quase nenhuma evolução.
Depois da Aeronáutica, foi o basquete universitário. Eu ainda brigava com o meu próprio peso, que subia e descia descontroladamente. O basquete era só um acessório. Eu ia treinar, eu ia jogar, mas eu simplesmente estava desinteressado, porque eu não via um futuro possível naquele jogo para mim.
Ou seria tudo, ou seria nada, e eu optei pelo nada, porque era muito mais fácil.
E foi só lá em meados de 2018 que eu percebi que havia feito a escolha errada. O meu tempo jogando basquete competitivo se aproximava do fim e, olhando em retrospectiva, não havia nada para eu me orgulhar. Eu estava perto de nunca mais jogar basquete por um time organizado, representando alguma coisa, de maneira competitiva, e não havia nada para contar. Apenas uma história de covardia e desinteresse.
Eu senti saudades do basquete jogando basquete, e então eu percebi que eu não poderia abrir mão tão facilmente de algo que se recusou a sair da minha vida, não importando o quanto eu o afastasse.
Foi assim que eu percebi. O basquete jamais me amaria de volta se eu não desse tudo de mim. Tenho pouco tempo. Não sou nem serei profissional. Jogo por recreação. Meus dois joelhos doem, o esquerdo em especial. Eu estava acima do peso. Eu era displicente. Logo estarei formado, logo o basquete será apenas um evento casual para quando o tempo colaborar.
Assim eu decidi abrir mão da noção fabricada de potencial e apostar em outra coisa: disciplina e respeito pelo processo de aprendizado. Pela primeira vez em mais de 10 anos eu me matriculei em uma academia e decidi que, a partir daquele momento, eu me tornaria um jogador melhor - não um grande jogador, não o melhor jogador, mas um jogador melhor do que eu era. Controlei meu peso, fortaleci meu corpo, dediquei horas e horas na academia e na quadra.
just to get a little better?
just to get a little better.
E eu me tornei um jogador melhor. Não um grande jogador, não o melhor jogador, mas um jogador melhor do que eu era.
Neste feriado de novembro de 2022, eu entrei em quadra no que pode ser tido o meu último jogo de basquete competitivo para jogar a semifinal dos jogos jurídicos pela São Francisco contra o Direito PUC.
E nós perdemos.
E ainda que a decepção pela derrota tenha enchido o meu coração de tristeza, eu não senti nenhuma dor pelo potencial não realizado da minha própria qualidade. Eu entreguei o que eu podia ao jogo de basquetebol e ele me deu de volta o direito de estar em quadra, competindo, por uma última vez.
Ego e expectativa, as forças que nos levam a começar, as forças que nos levam a desistir
Precisei contar sobre a minha relação com o basquete porque foi essa relação que me levou a me matricular numa academia pela primeira vez desde que eu, aos treze anos, odiando o meu corpo, me meti a perder peso. Mas a minha história com a academia tem um capitulo só seu.
As pessoas começam a treinar por muitos motivos. Algumas, como eu fiz no começo, usam a academia como acessório para outro objetivo esportivo. Muitas se matriculam na academia porque, como eu aos treze anos, odeiam seus corpos, acreditam que devem odiar seus corpos.
De maneira geral, contudo, as pessoas se matriculam em academias para mudar alguma coisa. Para fazer diferente.
Essa mudança, movida pelo ego, traz consigo uma expectativa. A expectativa de ser um jogador melhor, a expectativa de perder peso, a expectativa de ganhar músculo, a expectativa de conseguir subir uma escada sem ficar cansado, qualquer expectativa que seja.
A combinação do ego e da expectativa, aliada àquele impulso inicial, constituem uma poderosa fonte de motivação.
Eu odeio a ideia de motivação.
Essa motivação te leva a frequentar os primeiros treinos, a suportar as primeiras semanas. Até que ela começa a perecer. Você está treinando, sim, mas a mudança não está acontecendo, ou pelo menos não está acontecendo tão rápido quanto você gostaria.
Você abre o instagram e vê fotos de gente sem camisa com abdomens absurdamente definidos, vê vídeos de gente erguendo pesos inimagináveis. E você volta para a academia no dia seguinte para se ver no espelho e odiar o que você vê.
Então você se sente estúpido. Você sente vergonha por estar lá. Você tem a absoluta certeza de que você é motivo de piada para os outros frequentadores da academia. Você tem a absoluta certeza de que você nunca vai atingir o objetivo que você estabeleceu.
Então você falta uma vez. Duas vezes. E no fim você tem oito meses do plano anual pela frente, oito meses em que você não pretende visitar a academia uma vez sequer.
E você desiste.
O ego ferido e a expectativa frustrada te levam até a porta de saída e você decide não voltar mais.
Mas e agora? O que você tem? Como você está melhor abrindo mão da possibilidade de mudança que você queria?
Deixa eu te contar uma coisa.
Existe um estadounidense chamado Zion Williamson. O Zion Williamson é um jovem de 22 anos de idade, com 1.98m de altura e mais de 120kg de, basicamente, músculo. Ele é um jogador da NBA e um dos prospectos mais valiosos da história recente da liga. Ele é um em um milhão:
E você pode se perguntar: e o que eu tenho a ver com o Zion Williamson? Eu sou eu, uma simples pessoas, não um atleta de alta performance. Bom, o Zion Williamson é quase um mutante. Ele faz coisas que as pessoas não deveriam fazer. Ele se move com uma agilidade absurda para o tamanho que ele tem, ele pula numa altura absurda para o peso que ele tem. E isso cobra um preço. A imprensa está sempre em cima dele por causa do peso, por causa das lesões.
A cobrança é tão absurda que recentemente ele foi perguntado sobre o seu prato favorito no dia de ação de graças e ele se recusou a responder, porque ele sabia que ele seria vítima de assédio nas redes sociais e por parte dos jornalistas.
Um dos maiores prospectos da história recente do basquete mundial não tem coragem de falar o seu prato favorito, porque a reação dos outros o intimida.
E eu não estou contando essa história para dizer que isso é normal ou aceitável ou razoável. Eu estou contando essa história para dizer que todos nós somos vitimas de um controle desumano e ridículo sobre nossos corpos, fomentado, hoje especialmente, pela pressão externa.
Compre uma camiseta maior, está marcando sua tetinha.
Eu não vou falar, porque farão piada sobre mim.
O mundo nos convenceu de que os nossos corpos - qualquer corpo, basicamente - são inadequados, e essa inadequação fabricada nos paralisa. Nos impede de fazer o uso mais produtivo possível dos nossos corpos, que é a nossa ligação com o mundo físico.
É melhor não fazer do que fracassar.
Eu tive vergonha de entrar na academia pela primeira vez. Eu tive vergonha de usar os pesinhos menores. Eu tive vergonha de correr na esteira.
Muita vergonha.
Mas com o passar do tempo eu percebi que as pessoas ali - a maioria, pelo menos - não estavam tirando sarro de mim. Que ninguém estava interessado em me menosprezar. Que quase todos sofriam com essa sensação de serem inadequados, e lutavam contra essa sensação dia após dia.
Eu estava na academia porque eu queria melhorar em um aspecto da minha vida. As outras pessoas também.
E ninguém vai me repreender se eu deixar de treinar um dia. Ninguém vai me aplaudir se eu não faltar um dia sequer.
Mas isso não importa, eu finalmente entendi. Expectativa e ego são ilusões. O que permaneceu foi o compromisso que eu decidi firmar comigo mesmo.
Colocando anilhas na barra
Hoje eu posso dizer sinceramente que eu gosto de treinar.
Não que eu gosto de treinar todos os dias. Não que eu gosto de todos os treinos. Não que eu estou motivado. Eu não estou, não é isso.
Mas eu gosto de treinar, porque eu aprendi a apreciar o processo de repetir dia após dia a mesma ação até ver pequenas melhoras. E, no longo prazo, ver o acúmulo dessas pequenas melhoras se transforarem em grandes mudanças.
Eu gosto de treinar, porque eu ajustei as minhas expectativas e eu aprendi uma coisa ou outra sobre treino.
Por exemplo:
Treinar - na academia - não te faz perder peso e nem deveria fazer. Treinar não é sobre ser gordo, magro ou meio-termo. Treinar é sobre capacitar fisicamente o seu próprio corpo. É sobre fortalecer os seus músculos. É sobre ficar mais forte. Mais resistente.
É comum chegar em uma academia e ser orientado por um mau profissional ao dizer que você quer, digamos, perder peso. O mau profissional te colocará na esteira e na bicicleta e na escada. Você suará, ficará cansado, verá as calorias gastas no visor dos aparelhos. Então, ao subir na balança, você terá ganhado peso.
Expectativa e ego. E aí você desiste.
Mas perder peso se dá a partir de adequação nutricional e não a partir do exercício físico. O exercício físico pode ser aliado em uma estratégia de perda de peso, se essa for a sua intenção, mas ele não é o força motriz dessa estratégia.
Exercício físico é sobre a exploração dos potenciais do seu próprio corpo.
E quando você percebe que o seu corpo pode fazer mais do que você imaginava, você quer continuar fazendo. Você quer ver até onde você pode ir.
Isso pode te motivar, mas motivação nunca é o suficiente. Eu passei a tratar o meu treino como um compromisso feito qualquer outro. Não é secundário, não é algo que eu deixo para depois. Está na minha agenda assim como o trabalho e como o mestrado. É uma obrigação que eu assumi comigo mesmo - e com mais ninguém.
Se eu não for, ninguém vai se importar. Mas eu vou.
E quando eu não quero ir, eu vou mesmo assim. Um compromisso feito outro qualquer. Quatro ou cinco vezes na semana, por uma hora.
Motivação pode ser impulso, mas ritmo e consistência mantêm o movimento.
E o resultado desse compromisso é, sim, estético. Eu me sinto bem com o meu corpo. Eu não tenho medo, hoje, da marca da camiseta. Mas eu não me sinto bem com o meu corpo só porque eu estou mais magro ou mais gordo ou mais forte ou menos forte, mas porque eu entrei em comum acordo com o meu próprio corpo.
Eu explorei os potenciais do meu corpo, vi o que era possível e o que não era possível, e abandonei as ilusões.
Afinal, seja como for, este é o meu corpo, é o que eu tenho, e é com ele que eu me relaciono com o mundo. São com meus dedos compridos e meio tortos que eu escrevo. Com os meus pés que eu ando e corro. Com a minha mão que eu arremesso uma bola na cesta e toco quem eu amo. Com as minhas pernas que eu suporto meu peso. E eu quero que esse corpo dure o máximo possível, que ele seja funcional na medida do possível, que ele me permita ser quem eu sou, porque é nessa capacidade de expressar fisicamente quem eu sou que reside a beleza do meu corpo.
E quando eu adiciono novas anilhas - as menores anilhas, as de 2,5kg - na barra olímpica, aumentando o peso dos exercícios, é como se eu avançasse mais uma casa na minha relação com o meu próprio corpo.
É como se eu perguntasse ao meu corpo:
Você pode fazer isso?
E ele me respondesse:
Vamos tentar.
E eu tento. E às vezes eu consigo, às vezes eu não consigo. Mas um dia depois do outro eu continuo fazendo.
E adicionando mais anilhas na barra, vendo até onde eu posso chegar.