Corretor de imóveis é o especialista em tristeza
O homem nasce bom.
Mas um dia ele precisa se mudar, ele precisa encontrar uma casinha, um apartamento. Então ele procura na internet, ele acha números e mais números de telefones em anúncios e mais anúncios de imóveis para alugar por preços pouco convidativos, porém não há muito o que fazer, e ele liga em vários desses números.
É agora, nesse processo de contato com os corretores de imóveis, que a loucura, a insanidade olha para o homem. Ela olha e dá uma piscadela. O homem tenta resistir. Ele olha para o outro lado. Mas ele escuta a voz da loucura. Ela diz: meu bem. E o homem olha bem nos olhos da psicose, encontrando sua semelhante.
Quando eu me mudei de Ribeirão Preto para São Paulo, o processo todo foi pouco agradável. No entanto, eu precisava me mudar, isso era um fato, e a necessidade é uma ótima força propulsora para as decisões (boas ou ruins). Lidar com corretor de imóvel (ou imobiliária) e com mudança é sempre desagradável, mas em Ribeirão Preto era menos desagradável do que em São Paulo pelo simples fato de o aluguel de um apartamento de três dormitórios em Ribeirão ser o preço de uma kitnet no centro de São Paulo. Não gastar todo o seu salário em aluguel te deixa naturalmente mais feliz.
Eu fiz o que precisava fazer. Falei com corretores, expliquei o que eu buscava, a área que eu desejava, o quanto eu podia pagar.
E aí eu recebi as respostas.
Quero um apartamento perto da linha vermelha - "olha esse stúdio ótimo em Taboão da Serra!";
Quero um apartamento de um dormitório ou kitnet - "olha essa casa em Santana com piscina e área para churrasco!";
Posso pagar até R$1.600 - "esse aqui tá num preço legal, o pacote aluguel + condomínio sai por R$2.500".
Aparentemente a primeira aula do curso de corretagem ensina como ignorar tudo o que a pessoa que está procurando um imóvel diz.
Depois de muitas idas e vindas eu achei dois apartamentos. Um, no prédio em que eu moro até hoje, e o outro perto da estação da Luz.
Visitamos primeiro o apartamento no prédio em que eu moro. O apartamento era pequeno, um cômodo só, cozinha americana, banheiro. Não era perfeito, mas era decente. O preço era ok - e por ok não quer dizer ok, de verdade, mas ok de maneira relativa, que é o que importa. A localização não era exatamente uma maravilha - o centro de São Paulo nunca parece uma maravilha para os olhos interioranos -, só que era prático. Era do lado da São Francisco praticamente e a duas estações do meu futuro trabalho. O morador que estava se mudando ainda estava lá e disse que gostava do lugar, que o dono do apartamento era também o síndico do prédio e sempre tinha sido um querido com ele.
Depois de terminarmos a visita, enquanto descíamos no elevador o corretor nos disse - para mim, para a minha tia e para a minha irmã -: "o proprietário é gay, mas é gente fina".
O proprietário é gay, mas é gente fina.
O proprietário é gay, mas é gente fina.
Em algum momento entre o começo da visita e aquele instante ele julgou que seria conveniente nos dar essa informação. Não era. Ficamos os três encarando o corretor, que nada disse, e parecia orgulhoso consigo mesmo.
O segundo apartamento era o da Luz. Eu já estava praticamente decidido a ficar com o primeiro pela praticidade e pelo preço. Mas já tínhamos combinado com o outro corretor, então lá estávamos nós. Saímos do metrô e caminhamos até o prédio. Era uma caminhada de uns cinco minutos, nada demais. Só que a região era deserta, um monte de muros e ruas vazias. Não passava exatamente uma sensação de segurança.
Chegamos na frente do prédio, que era muito mais novo do que o primeiro. Nada do corretor. Cinco, dez, quinze minutos. Nada.
Liguei. Nada.
Estava a ponto de ir embora e ele mandou mensagem pedindo desculpas e dizendo que estava chegando.
Ok. Aguardamos mais um pouco e ele chegou. Subimos para o apartamento. O prédio era novo e o apartamento era espaçoso, tinha um dormitório, sala, cozinha e banheiro. No condomínio tinha área de lazer. Fomos conhecer a área de lazer e uma família brincava com o filho no playground.
Na hora de sairmos, o segundo corretor nos disse: "é cheio de china por aqui, mas é sossessgado".
É cheio de china por aqui, mas é sossegado.
É cheio de china por aqui, mas é sossegado.
Entendi. Aula um: ignorar o cliente. Aula dois: homofobia. Aula três: xenofobia.
Incrível.
Perguntei sobre a segurança da área e a resposta foi fascinante: "é meio vazio a noite, mas não tem perigo, porque tem uma empresa de telemarketing aqui do lado".
Eu não continuei com a conversa, mas fiquei pensando em como a empresa de telemarketing seria útil para evitar um assalto às 23 horas de uma quinta-feira, quando eu estivesse voltando da faculdade. Lá estaria eu na rua, de mochilinha e com cara de otário, quando de repente das sombras surge o meliante portanto uma arma de foga, dizendo as palavras mágicas Perdeu, playboy, e nesse instante saíria pelo portão Margarete, da central de atendimento do Banco Santander, e me salvaria do crime ao oferecer para o meliante um investimento imperdível em títulos de capitalização.
Não sei por qual razão eu não me senti convencido.
No fim das contas, fiquei com o primeiro apartamento. Morei lá por quatro anos, até outubro do ano passado, quando me mudei para esse apartamento atual, que é no andar debaixo do apartamento anterior, só que tem uma planta maior - um dormitório, banheiro, cozinha, etc.
Nesses quatros anos eu tentei me mudar diversas vezes. A principal razão é que o meu cachorro, Bud, está em Boituva com a minha irmã, porque seria impossível ele vir para cá em uma kitnet. Por isso eu procurei e procurei e procurei e procurei apartamentos maiores, sem sucesso.
Quer dizer, eu achei apartamentos maiores.
Eu tinha quatro exigências:
Que fosse minimamente espaçoso.
Que fosse razoavelmente localizado, ao menos perto do metrô.
Que aceitasse pets.
E que não custasse o meu salário mensal.
O que eu não achei foi um apartamento que cumprisse todos esses requisitos.
Eu achei apartamentos espaçosos a três horas do centro, onde eu trabalho e onde eu estudava.
Eu achei apartamentos bem localizados, que custavam R$3.000.
Eu achei apartamento que aceitassem pets, e também aceitavam defuntos, e venda de armas, e o que mais você quisesse fazer, já que o prédio parecia saído diretamente de um filme trash de terror.
Antes de qualquer visita eu avisava que tinha um cachorro e que por isso estava procurando um apartamento maior. Depois de falar com um corretor, fui ver um apartamento no Largo do Arouche. O prédio era legal, o apartamento também. O corretor me perguntou se eu morava sozinho. Eu disse que sim. Ele perguntou se eu pretendia continuar morando sozinho. Eu disse que sim, e quis saber o porquê dessas perguntas. Ele explicou, muito tranquilamente:
"O último rapaz para quem eu aluguei morava sozinho, e a namorada veio passar um tempo aqui, mas veio de mala e cuia, acho que ela ia mudar para cá, mas ele disse que morava sozinho, aí a síndica viu que ela tava com um monte de mala e proibiu a entrada, que só um podia ficar no apartamento".
Ele contou isso com uma naturalidade enorme. Tudo normal, a síndica proibindo a entrada da namorada de um morador, o corretor não vendo problema algum na situação.
Ok.
Aula quatro: pau no cu do inquilino.
Quando nos despedíamos, ele perguntou se eu tinha interesse. Eu disse que precisaria ver e que daria um retorno. Então ele arrematou:
"Mas é melhor você não trazer o cachorro, viu? A proprietária não gosta muito".
Puta que pariu.
O homem nasce bom.
O corretor de imóveis o corrompe.
Uma foto do Bud como recompensa para você que leu até o final. - gsc