DEIXE O SEU RECADO APÓS O SINAL
Ficções / Viver exige malabarismos que nem sempre, quase nunca estamos prontos para executar.

Como já era rotina em toda sexta-feira a noite, foi para cama mais cedo para que o dia seguinte chegasse logo, uma estratégia repetidamente falha, uma vez que entre ir para a cama, deitar-se e, enfim, adormecer não existe, necessariamente, correspondência direta. Adicione-se a ansiedade pelo dia seguinte e a distância entre a intenção e o alcance do objetivo se torna ainda maior. Ainda assim, ele foi para a cama mais cedo e se deitou na expectativa de dormir o mais rápido possível, fazendo com o que o dia seguinte também chegasse o mais rápido possível.
Eventualmente, adormeceu. De exaustão ansiosa. Não sabe em que momento adormeceu, manteve os olhos fechados esperando que o apagão o embalasse diretamente para a manhã, para que a realidade fosse inundada pela névoa púrpura dos sonhos delirantes. Manteve os olhos fechados, tentando afastar o pensamento recorrente do coração palpitante: todos os planos para o dia seguinte. Como já nos ensina a sabedoria popular, diga-nos para não pensarmos em um elefante e lá estaremos nós pensando em um elefante. Tentava não pensar em um elefante e, enquanto tentava, eventualmente adormeceu.
Acordou antes das sete. Nos primeiros segundos com os olhos abertos, não pensou em nada, apenas sentiu o peso do próprio corpo, o corpo que crescia, o corpo que se alterava, sentiu o peso do corpo contra o lençol, o peso da cabeça sobre o travesseiro, e nunca se sentiu mais confortável do que naquele momento. Então, passou: ele se lembrou. Pulou da cama e correu para o banheiro e fez xixi e limpou os pingos da tampa da privada e lavou as mãos e escovou os dentes. Tudo como deve ser, para que nada desse errado.
Ainda não tinha visto a hora e quando viu, sabia que era cedo. O pai não vinha antes das oito. Chegava sempre oito e vinte, oito e meia, e de lá passavam direto na feira. Ele começou a pensar na feira. Pensou que pediria um pastel de frango com catupiry e não de queijo dessa vez. Um pastel de frango com catupiry e uma coca-cola. E pediria para o pai passar na barraquinha de jogos de video-game, e o pai passaria, porque disse da outra vez que passaria da próxima vez, e nada é melhor do que quando a promessa da próxima vez se torna a promessa da vez imediata. O dia havia chegado. Sem perceber, estava tomado outra vez pela ansiedade incontrolável.
Era sábado.
Nos últimos dois anos, desde que os pais o chamaram e comunicaram que estavam se divorciando e que o pai iria se mudar, desde o dia em que ele não dormiu um só minuto durante a noite, alternando entre choro, desespero e tristeza, sábado significava o dia de ficar com o pai. Sábado e domingo. De sábado de manhã até domingo a noite. Nos últimos dois anos, terminava o domingo pensando no sábado seguinte. Contava os dias, dia após dia, para o final de semana com o pai.
Era sábado, o que significava dizer que não havia a imposição da rotina da semana. A rotina da semana era a rotina da mãe. A rotina de acordar antes das seis, de tomar banho, de colocar o uniforme, de ir para a escola, de chegar em casa da escola, almoçar, tirar o uniforme, fazer imediatamente a lição, arrumar o quarto, lavar a louça, voltar para o quarto para esperar o dia passar, repetir tudo outra vez. Sábado, não. Sábado acordava cedo, porque não queria mais dormir e queria que o dia inteiro durasse para sempre: começava na feira e todo o resto seria decidido na hora, como ele o pai quisessem.
Era sábado: eram livres.
Durante a semana, não. Sábado e domingo, sim.
O pai era a própria liberdade.
A semana com a mãe era só a preparação para o final de semana com o pai.
Que a nós essa dinâmica soe injusta é natural, somos adultos e bem formados, o córtex pré-frontal plenamente funcional. Que a ele não soasse injusta é também natural. Era um menino. Mas a mãe não era, e com córtex pré-frontal plenamente funcional ou não, ainda era humana, e sabia que o filho desejava mais do que tudo o final de semana para ficar com o pai, e a ela também soava injusta a dinâmica de distribuição do afeto, e a ela essa dinâmica afetava de maneira diferente, com um crescente ressentimento.
E o sábado havia, enfim, chegado outra vez.
Pôs-se em frente a tv da sala e, deitado no sofá, assistiu o que estava passando sem prestar atenção, apenas pensando no relógio. A mãe se levantou, deu bom dia ao filho, ele deu bom dia à mãe, ela perguntou se ele queria comer alguma coisa, ele disse que não, que comeria na feira com o pai, ela não respondeu e se magoou.
Passava-se das sete. As oito horas estavam chegando e ele conferia o horário frequentemente. Pastel na feira, coca-cola, barraquinha de jogos de video-game, comprar um jogo novo, jogar com o pai até a hora do almoço, almoçar. E depois? Poderia jogar bola com os meninos da rua do pai. Talvez não, nem todos eram agradáveis, os mais velhos faziam com que ele se sentisse triste consigo mesmo. Poderia brincar na árvore do quintal, convencer o pai a construir, enfim, uma casinha para colocarem nos galhos. Poderia, primeiro, convencer o pai a irem procurar material para a casinha: caminhar pela cidade ao lado do pai, sem hora para voltar, eis sua definição de felicidade. Caminhar pela cidade, coletar o material, parar na padaria, comer uma bomba de chocolate. Sim, fariam isso.
A não ser que.
O pai havia começado a namorar uma mulher. Quando soube da notícia, também chorou: sobre a mulher não sabia nada, e não precisava saber, já que a questão não era sobre a mulher em si.
Era a mudança.
Outra mudança.
Primeiro: o divórcio.
Depois: a mudança do pai para outra casa. De repente, a casa em que vivia já não era a casa em que vivia, tornou-se um pedaço do que havia sido.
Depois: a semana com a mãe, o final de semana com o pai.
Depois: a namorada do pai.
Só queria que as coisas ficassem como um dia tinham sido. Só queria que os dias felizes durassem muito e os dias tristes durassem pouco. Mas a todo momento, uma nova mudança, e agora teria que aprender tudo outra vez, mais uma vez.
Os planos para aquele final de semana dependeriam, também, dos planos do pai com a namorada, que, depois que ele a conheceu, era bastante agradável e o tratava com carinho. Mas o carinho não mudava o fato de que a atenção do pai estava dividida e ele só tinha o pai pelo final de semana, não era justo que o dividisse com outra pessoa.
Que a ele soe injusto é natural. Que a nós seja compreensível o seu sentimento também é natural. Viver exige malabarismos que nem sempre, quase nunca estamos prontos para executar.
Imediatamente ficou amuado, porque temeu que o pai não quisesse sair para coletar material, nem passar na padaria.
Mas tratou de tirar o pensamento da cabeça: para não pensar no elefante, pensou em outra coisa. Pensou que, a noite, poderiam assistir TV juntos, na sala, deitados sobre o colchão, como faziam em muitos finais de semana. Poderiam alugar um filme. Sim, alugar uma fita e assistir todos juntos, até a namorada do pai, que fazia uma pipoca com queijo muito gostosa.
Deixou de ficar amuado e quando percebeu, o relógio já havia passado das oito.
O pai chegaria a qualquer momento.
Manteve a tv ligada, porque assim achou que o pai chegaria mais rápido — desde que ele não estivesse prestando atenção, ouviria a batida no portão logo, logo.
Esperou.
O programa continuou passando na tv.
Esperou.
O programa entrou nos comerciais.
Esperou.
O programa voltou.
Esperou.
Os créditos subiram.
Esperou.
Outro programa começou.
Enfim olhou para o relógio e sentiu o amargor da notícia triste, mas esperada: eram quase nove horas.
Às nove, eu ligo, pensou. Até as nove ele vai chegar, com certeza.
A mãe passou pela sala e pensou em perguntar, mas decidiu ficar calada. Estava magoada e não quis dizer nada.
As nove chegaram e o pai não. Pegou o telefone e ligou.
Chamou, chamou, chamou. Até que a voz da secretária eletrônica enunciou:
Deixe o seu recado após o sinal.
Desligou.
Se ele não está em casa, ele está vindo. Acalmou-se. Só poderia ser isso. Se ele não está em casa, ele está a caminho. Voltou a assistir o que passava na tv.
E outra vez os créditos subiram.
Dez horas.
Ligou outra vez.
Deixe o seu recado após o sinal.
Desligou.
Se ele não está em casa e está vindo, ele já deveria ter chegado.
Foi até o portão e olhou a rua: nada do pai até onde os olhos alcançavam.
A mãe, da cozinha, viu o filho espiando. Balançou a cabeça. Não disse nada.
Ele voltou para a sala e ficou ao lado do telefone. Quando eram onze horas, ligou pela terceira vez. Após o sinal, deixou um recado:
Pai, oi, sou eu. Você não vem?
Desligou.
A mãe ouviu da cozinha. A mágoa se misturou com a comiseração pelo filho. E a comiseração se transformou em raiva pelo pai. E a raiva pelo pai se desdobrou em rancor pelo filho. E esse ciclo a assustou.
Onze e meia e ele continuava no sofá, já sem prestar atenção na tv ligada. Discou o número do pai outra vez.
Pai, onde você tá?
Desligou.
Meio-dia a mãe disse que o almoço estava pronto.
Ele disse que não queria comer, que almoçaria com o pai.
Filho.
Mãe, eu vou almoçar com o meu pai, hoje é sábado.
Ela não insistiu.
Ligou outra vez.
Pai, já é hora do almoço.
Desligou.
Quando o relógio marcou uma hora da tarde, a mãe levou até a sala um prato feito.
Mãe, já disse que não quero comer. Enquanto falava, seus olhos se encheram de lágrimas.
Come um pouco, depois você janta com o seu pai.
Não, hoje é sábado, vou almoçar com ele, e agora as lágrimas já começavam a escorrer.
A mãe se irritou e deixou o prato sobre a mesa. Para de ser tonto, se seu pai viesse, já estaria aqui.
O menino arregalou os olhos.
Ela se virou e quis chorar, também. Quis chorar pelo ressentimento que a tomava inteira e por ter falado daquele jeito e por ter magoado o filho, e quis chorar de raiva por ter magoado o filho quando a mágoa primeira sequer havia sido causada por ela.
A essa altura, já percebemos que esta história não trata realmente de justiças ou injustiças. Nenhuma história trata realmente de justiças ou injustiças: não é este o departamento das histórias.
Duas da tarde. Com fome, com raiva, com tristeza, ele ligou novamente e ao ouvir o sinal, disparou:
Você não veio por causa dela, eu sei, eu sei que foi isso, você não veio porque quer ficar com ela, eu odeio odeio odeio ela, e desligou. Estava com o coração disparado.
Ela, é claro, era a namorada do pai. Como modo de sobrevivência, desviou a culpa do pai para a namorada. Sim, ele não havia ido buscá-lo porque estava com a namorada, só poderia ser isso.
Ligou mais umas três vezes e repetiu as mesmas coisas, com outras palavras, cada vez mais desagradáveis e carregadas de um ódio genuíno que apenas uma criança ferida pode produzir, porque não tem outro mecanismo de defesa.
Já eram quatro horas. O prato que a mãe havia trazido estava frio. Levou o prato até a cozinha e esquentou no micro-ondas. Comeu enquanto chorava.
O telefone tocou e ele saiu correndo para atender. Quando colocou o telefone no ouvido, a mãe já havia atendido na outra linha. Seu coração se encheu de esperança, aguardando a voz do pai chegar no seu ouvido. Mas não era a voz do pai.
Era a sua avó ligando, para conversar com a sua mãe sobre qualquer assunto que adultos precisam conversar. Desligou o telefone e, é claro, a esperança criada foi imediatamente transformada em repulsa.
Sentiu do seu peito irradiar um único sentimento: o profundo desejo de que o pai estivesse morto.
Sim, que o pai tivesse sido vítima de um infarto, palavra que já tinha ouvido antes, quando o pai foi internado há alguns anos com dor no peito. Foi por pouco, é preciso muito cuidado, o médico disse, e ele se lembrava das palavras: foi por pouco. Evitava pensar no assunto, mas agora não podia evitar: o elefante estava ali, sobre o seu peito, sentado.
Desejou profundamente que o coração do pai tivesse parado de vez. Assim, ele não poderia ter ido buscá-lo.
Assim, ele não teria esquecido.
Assim, ele ainda o amaria.
E assim como o sentimento de desejo pela morte do pai se irradiou, em seguida a culpa pelo desejo pela morte do pai suplantou o sentimento, atingindo cada extremidade do seu corpo. Com a culpa, o choro convulsivo foi incontrolável. A mãe veio do quarto, onde conversava com a avó, e perguntou para o filho o que tinha acontecido.
Ele não respondia. Só chorava.
A mãe abraçou o filho, que continuava chorando. O ressentimento que ela sentia antes foi suplantado por medo e piedade. Segurou o filho o mais perto de si que podia, com toda a força que tinha, até o menino parar de chorar.
Quando ele parou, ela não perguntou outra vez o que era. Nem tudo demanda esclarecimento.
Ele perguntou: será que o meu pai morreu?
Ela respondeu: não, filho, claro que não, ele deve ter precisado fazer alguma coisa.
Secou o rosto do filho com as mãos e disse para o menino ir jogar uma água na cara.
Ele foi. Viu-se no espelho com os olhos vermelhos. Lá fora, a luz da tarde já ia se despedindo, o asfalto já não estava iluminado com o sol. O sábado havia chegado e o sábado começava a partir.
E o pai não foi buscá-lo.
Já a noite, tentou ligar mais uma vez. Quando o sinal da caixa postal soou, não disse nada. Colocou o telefone no gancho.
Dormiu rápido e não sonhou com nada. Antes de dormir, pediu a Deus que o pai não estivesse morto.
Quando acordou, sentiu o peso do corpo, sentiu o toque do travesseiro, sentiu a luz entrando pela cortina. Não era tão cedo: quase dez da manhã. Ao chegar na cozinha, a mãe estava sentada a mesa. Seu pai te ligou, ela disse. Antes que ele respondesse, ela emendou: pediu para você ligar para ele.
Sem dizer nada, foi para a sala e discou o número do pai. Em três toques, o pai atendeu.
Achei que tivesse te avisado que ontem não ia conseguir ir, disse o pai.
Não avisou.
Achei que tivesse avisado. Estou indo aí agora.
Não precisa, o menino respondeu.
Mas hoje é domingo, o pai disse.
Mas não precisa, quero ficar aqui, o menino respondeu. Não queria, é claro, mas também não queria ir. Não naquele dia. Não naquela hora.
Mas filho.
Quero ficar aqui.
Então tá bom, o pai disse. Despediu-se e desligou o telefone.
O menino ficou feliz: o pai estava vivo. O menino ficou triste: o pai estava triste e havia se esquecido. A mãe ficou feliz: o menino ficaria em casa. A mãe ficou triste: não pelo seu próprio desejo. O pai tinha certeza de que tinha avisado, e mesmo que tivesse: justiça, injustiça, certo, errado — não é esta a história.
E as mensagens ainda estão na caixa postal do pai, que viu as ligações perdidas do filho, mas não reproduziu as gravações.
Um dia elas serão reproduzidas. E quando elas forem reproduzidas, então teremos a história que queremos contar.