Só mediante a devida diligência é possível chegar ao fato de que ele, na verdade, não é daqui, atravessou o oceano há muitos anos e nunca desatravessou. Seu português, salvo algumas palavras aqui e acolá, não carrega o sotaque da sua origem e lhe chamam de Zé, os mais íntimos, seu Zé, os mais respeitosos, seu José, os respeitosos e reticentes a contração. Só mediante a devida diligência é possível chegar ao fato de que ele, Zé, seu Zé, seu José, é, na verdade, Mr. Joseph, nascido e criado no Reino Unido, lugar em que há muito não coloca seus pés, quase sempre metidos em chinelas da havaianas. Veio para cá a trabalho, apaixonou-se pela motorista de táxi, casaram-se em dois meses e a família e o empregador ficaram sabendo por carta, dado o preço da ligação internacional na época dos fatos, que ele havia decidido permanecer.
Permaneceu. E com a motorista de táxi, que hoje não exerce mais tal mister, mas continua sendo a responsável pelo volante sempre que os dois vão de lá para cá, permanece também casado, com dois rebentos para comprovar a união e o amor, que hoje já são crescidos e graúdos e, veja como são as coisas, um deles fez o movimento contrário do pai, atravessou o oceano em sentido contrário para estudar e, por ora, apenas por ora, ainda não desatravessou.
Fato é que, para todos os efeitos da vida concreta, seu José é homem brasileiro como você, como eu, mas o Brasil, mesmo para nós que aqui nascemos e fomos criados, é um país enorme e suas armadilhas são infinitas — a língua portuguesa brasileira, que é própria, extensa, dançante, traiçoeira, bonita e terrível é um labirinto sem saída, você só se acostuma em estar sempre perdido.
Veja só: seu José e a esposa estão, neste momento, em Belém. Cidade em que não estiveram antes, aproveitam a aposentadoria para conhecer mais do meio para cima do Brasil. Quando Joseph atravessou o oceano, pousou em Guarulhos e de lá foi para São Paulo, onde se encontraria com uma meia dúzia de funcionários da filial da empresa britânica. Em São Paulo, acompanhado dessa meia dúzia de funcionários, foi, em um domingo, ao Pacaembu assistir um Corinthians e Palmeiras, porque, na palavra da meia dúzia de funcionários, nada o faria experimentar mais o que é ser brasileiro e, especificamente, brasileiro em São Paulo, do que um Corinthians e Palmeiras. Fã de futebol e torcedor do Liverpool, foi ao Pacaembu, meteu-se no meio da torcida do Corinthians usando uma camiseta preta — verde, não, Mr. Joseph, é proibido —, e aos vinte e três do primeiro tempo, carregado para lá e para cá no poropopópopópopó, ali, ainda que ele não soubesse, partia Joseph e nascia José, que, na volta do estádio para o hotel, entrou num golzinho quadrado com a plaqueta de táxi em cima e descobriu, pela segunda vez no dia, o amor. Passou muitos anos em São Paulo, foi para Minas, desceu para o sul, mas o norte e nordeste conhecia pouco. Decidiu o casal resolver a pendência e assim foram parar, agora, em Belém.
Em Belém, seu José usa a camiseta de 2005 do Corinthians, número 10, de Carlitos Tevez, e ele e a esposa caminhavam pelo ver-o-peso. Compraram as castanhas, compraram as lembrancinhas, molharam a nuca para suportar o calor e o cheiro de peixe. Nas barraquinhas do lado de fora, seu José viu as camisetas penduradas. Sabia que precisava levar uma para casa, sempre levava. Aproximou-se da barraquinha e, lado a lado, estavam as camisetas do Remo e do Paysandu, ambas devidamente falsificadas. Ali, precisaria tomar a decisão. Remo ou Paysandu? Paysandu ou Remo? Comprar as duas seria atitude de quem não tem brio, e brio seu José sempre teve, e o seu brio era ninguém mais, ninguém menos do que a sua esposa. Olhou para ela com as duas camisetas na mão e perguntou: my love — num sotaque carregado que apenas um brasileiro faria —, qual delas?
A esposa examinou com atenção. Levava a sério sua função, como levou a sério pilotar o táxi por tanto tempo, como levou a sério criar dois filhos, como levou a sério dizer Sim quando aquele inglês narigudo perguntou, no seu idioma natal, Will you marry me?. Sim, I will marry you, Zé. Enfim. Payasandu, ela disse. Gostei do lobo.
E assim se decidiu. Agora, é neste momento em que estamos, ele se vira para o vendedor, que cobre a cabeça em um boné e cutuca os dentes com a unha do mindinho. Quanto é, patrão? O vendedor confere a peça e responde: É galo, doutor.
Seu José se vê, de repente, como Joseph. Depois de tanto tempo, é raro que ele não saiba, de imediato, o que as palavras em português brasileiro querem dizer. Sabe, é claro, o que é um galo — o bicho de cacareja, o marido da galinha. Mas em se tratando de futebol, galo é outra coisa. E as palavras nunca são apenas o que elas podem ser. Certo, responde, e finge que está olhando outras camisetas para, na verdade, ir ter com a esposa.
Mas não é do Payasandu? Ele tá dizendo que é do Atlético, cochicha para a esposa, que não estava prestando atenção na conversa entre o marido e o vendedor. É o quê? Apontando para a camiseta, ele diz: Ele disse que é do galo. Claro que não, a esposa retruca. Seu José não sabe o que fazer, e continua, também, sem saber o preço. Para não passar vergonha, pois não quer, nessa altura do campeonato, ser confundido com um gringo ignorante, depois de tanto tempo se acomodando a sua posição de brasileiro adotado, pergunta se o vendedor aceita cartão. Aceita, mas aí é cinco a mais. E quanto é mesmo, desculpe? É galo, responde o vendedor outra vez.
Meu Deus. Seu José começa a pensar em inglês, o que já não fazia há sei lá quantos anos. Rooster? How much is a rooster? Pensa nos animais que estão nas notas de real: beija-flor, tartaruga, arara, mico-leão, onça, lobo-guará nas novas de 200. Galo, não tem. De onde vem o galo? Poderia, é óbvio, só perguntar, mas aí confessaria sua ignorância do léxico, seu papel de estrangeiro na comunidade discursiva. Não, não. Arriscaria. I will take my chances.
Puxou a nota de 100 e entregou ao vendedor. Risco calculado: mais do que 100 provavelmente não seria, na barraquinha de camisas falsas. E se fosse até 100, estava resolvido. O vendedor pegou a nota e, sem cerimônia, puxou o maço do bolso. Tirou uma nota de 50 do elástico e devolveu ao Joseph, que, com a nota e a camiseta do Payasandu nas mãos, sentiu-se José mais uma vez, graças a Deus.
Precisa de sacola? Não, obrigado.
Após ganhar uma distância segura, pegou a mulher pelo cotovelo e disse: de onde veio isso? E ela: de onde veio o quê? E ele: que galo é 50 reais? E ela: ué, sempre foi. E ele: mas como? E ela, assim, começou a rir. Meu inglêzinho, disse. Mas como? , queria saber, era tudo o que queria.
Vão indo embora, seu José ouvindo a explicação da esposa, impressionado com o que ouve. Quem sabe até jogue no bicho pela primeira vez — há de fazer valer a sorte de principiante, pois não é sempre que se começa de novo.
Seu texto apareceu para mim enquanto eu rolava o feed, e o título logo prendeu minha atenção. Mas foi a sua escrita que me fisgou de verdade! Achei genial, leve e, de certa forma, me lembrou um pouquinho o estilo de José de Alencar em Cinco Minutos. Simplesmente lindo!
Eu também não sabia!