Eu não posso ficar.
Amanhã é só uma ideia.
Amanhã é só uma ideia.
Pense sobre isso um instante.
A pior parte do luto não é a morte em si, que é terrível. A pior parte do luto é a vida. A pior parte do luto é ter que estar vivo quando alguém que você ama tão profundamente morre, deixando um enorme vazio, uma coleção de ausências. O luto não acontece de imediato, não vem em uma onda só. É fragmentado, dividido ao longo do tempo.
É assim: quando alguém que você ama tão profundamente morre, você se sente como se estivesse sendo dilacerado - e você está. Você sabe que tudo mudou e você não consegue acreditar. A pior parte é estar vivo e lidar com funerária, com hospital, com cartório, com testamento, com inventário, com tudo isso. As pessoas vêm até você e oferecem seus sentimentos, e você aceita, porque você precisa. Só que não acaba aí. Ao longo das semanas, dos meses, até dos anos outras pessoas vão te encontrar e elas se sentirão na obrigação de te dizer Meus pêsames, meus sentimentos, e você entende, elas estão fazendo aquilo de coração, mas você já passou por isso dezenas de vezes. O luto se prolonga. O ato da morte parece não ter fim, paradoxalmente, já que a morte é fim, é definitividade.
Depois é preciso seguir. É difícil seguir. Como é possível seguir agora em uma vida que você não conhece? Tudo o que você conhecia era de um tempo em que aquela pessoa que você ama tão profundamente existia, e agora ela não existe mais, não fisicamente, só a memória e esse monte de vazios.
Como é possível seguir?
Bom, você não segue. Essa é a verdade. Ninguém segue em frente.
Você recomeça.
O luto é o processo dos recomeços. A vida como você conhecia não existe mais. Agora é uma nova vida, que você vai iniciar com toda a bagagem que você trouxe até aqui, com a saudade de quem se foi, com as memórias, com a dor, com o amor, com tudo.
Você recomeça.
Por isso é tão difícil pensar na morte. A morte parece absurda. Parece absurdo que alguém um dia esteja aqui e no outro não esteja mais. Parece absurdo, arbitrário, ridículo. É por isso que evitamos de pensar na morte no dia a dia.
Por isso fazemos planos.
Fazer planos é desafiar a morte. Fazer planos é dizer: eu estarei vivo, custe o que custar.
Colocar o celular para despertar na manhã seguinte é resistir.
É querer permanecer em um mundo de impernanências.
All things must pass.
Nós também passaremos. Mas não agora, não tão cedo. Nós precisamos disso, nós acreditamos nisso: que há tempo. Que há tempo a frente de nós para que nós consertemos nossos erros, para que realizemos nossos sonhos.
Por isso é tão difícil pensar na morte. Por isso nós calamos sobre a morte. Por isso a morte, que nos cerca, que nós sabemos que está aqui, ao nosso redor, a todo momento, é silenciada. Ela existe, mas nós firmamos um acordo: ainda não, mais tarde. E seguimos. E recomeçamos.
Mas então o improvável acontece. A morte invade a nossa realidade e se apossa de tudo e nós não temos mais como negar:
somos frágeis.
Estar vivo é de uma enorme fragilidade, mais do que gostaríamos de admitir.
Quando alguém que nós estamos acostumados a ver todos os dias na tevê, na internet, a ouvir no spotify morre de uma hora para outra, nós nos deparamos com essa fragilidade. Nós somos obrigados a reconhecer que tudo está por um fio.
Nosso acordo com a morte vai por água abaixo e ficamos apreensivos - e se fôssemos nós? Abraçamos quem amamos. Queremos estar perto. Queremos proteger.
Tudo parece absurdo e mesquinho e pequeno.
Porque é.
Tudo parece frágil e efêmero.
Porque é.
Ainda assim, nós seguimos. Nós recomeçamos.
Nós fazemos planos. Nós colocamos o despertador para tocar.
Nós continuamos amando as pessoas que amamos e nós continuamos tendo o coração apertado pela ideia dessas pessoas um dia, essa data arbitrária e insuportável, morrerem.
Nós nos deitamos e dizemos: até amanhã.
Amanhã é só uma ideia, uma ideia na qual nós apostamos todas as nossas fichas, todos os dias. Amanhã e amanhã e amanhã e amanhã.
Eu não posso ficar, porque eu sou passageiro. Somos todos.
Mas, mesmo não podendo ficar, eu fico. Um dia a mais, e outro dia a mais, e outro dia a mais.
Eu não posso ficar. Mas eu fico.
Esse é um ato de amor.
Até amanhã. Fique bem. - gsc.