Eu posso estar errado - Edição Nº21
A lógica irracional do apressado
A lógica militar em relação ao tempo
Na Aeronáutica, horário era sempre um problema. A falta de tempo, mais especificamente, era sempre um problema. Nas escolas de formação militar existe esse pensamento recorrente que relaciona tempo curto com disciplina e hierarquia. Ao que tudo indica, o comando militar parece acreditar que ao colocar os praças especiais - militares em formação - sob uma rotina rígida e com intervalos curtos, com pouca margem para qualquer tipo de descanso, esses militares serão bons profissionais. Estarão preparados para todas as adversidades. Saberão gerenciar o tempo, utilizar recursos escassos, administrar até os períodos mais sombrios.
Talvez em virtude dessa linha de raciocínio, na EPCAR, que eu frequentei de 2012 a 2014, os horários eram bastante desagradáveis. Principalmente pela manhã. A alvorada era anunciada pela corneta às seis horas, e a partir desse momento ninguém podia estar deitado na cama, no sentido de que aqueles que estivessem deitados na cama após as seis seriam punidos (vez ou outra um oficial de permanência abria a porta do alojamento assim que o corneteiro dava o primeiro sopro no seu instrumento de tortura, gritando QUEM TÁ DEITADO FICA DEITADO, QUE EU VOU ANOTAR, e essa anotação virava, mais tarde, uns dias de prisão no final de semana).
Das seis até às seis e quarenta e cinco (talvez eu esteja errando por alguns minutos, mas a essência é a mesma) o rancho ficava aberto para o café da manhã. Parece ser tempo o suficiente, mas havia um problema. Mais de um. O primeiro problema é que além de acordar e tomar café da manhã, o aluno da EPCAR precisava fazer a barba (se tivesse barba, ou se tivesse fiapos de barba), arrumar a cama no padrão de arrumação determinado pelo comando do Corpo de Alunos, colocar a farda do dia (que deveria estar passada no padrão determinado pelo comando do Corpo de Alunos) (sobre uniformes eu vou falar logo, logo), e também descer para comer no rancho. O segundo problema é que quanto mais moderno (com menos tempo de escola - primeiro ano é o mais moderno, terceiro ano é o mais antigo), mais cedo se entrava em forma. É difícil explicar o conceito de entrar em forma, mas basicamente um grupo de militares é colocado em determinado local, organizados por altura, os corpos alinhados e cobertos (cobrir é manter a distância de um braço em relação a pessoa da frente), em virtude de alguma atividade. Nas manhãs, entrávamos em forma para tirar as faltas e irmos às salas de aula. O primeiro ano entrava em forma antes que todo mundo, o que acontecia umas seis e trinta, seis e trinta e cinco. Ou seja, o tempo curto para fazer tudo o que precisava ser feito pela manhã era ainda mais curto para os mais modernos.
O que eu fazia, então, era acordar um pouco mais cedo - cinco e quarenta, geralmente - para arrumar a cama, fazer a barba, colocar a farda, e estar pronto às seis para ir para o rancho. Lá eu me deliciava com um maravilhoso café queimado, um pão duro, uma manteiga congelada, um achocolatado sem marca e um leite morno esquisito.
Essa lógica de tempo curto era replicada em toda a rotina, que se encerrava com o toque de silêncio da corneta às vinte e duas horas, quando as luzes dos alojamentos eram apagadas.
Se a ideia era me fazer uma pessoa apta a lidar com as intempéries da vida, não se se funcionou. Mas eu passei três anos bastante cansado.
Outro fenômeno interessante era o da troca de uniformes. Troca de uniforme no meio militar significa exatamente o que o termo indica, e também significa outra coisa. Significa, por um lado, trocar de uniforme, literalmente, e por outro significa uma espécie de treinamento/punição.
Vou explicar.
Nas forças armadas existem vários uniformes, para várias ocasiões. Na EPCAR, especificamente, nós utilizávamos quatro uniformes principais. De segunda, quarta e sexta utilizávamos o 7º uniforme (camisa social azul claro de manga curta, calça social azul escura, sapato preto, bibico). De quinta e sexta, o 10º uniforme (camuflado). Na educação física, o uniforme de treino era o 9º uniforme. E nos finais de semana e feriados podíamos utilizar o abrigo.
Outros uniformes poderiam ser utilizados em ocasiões especiais - 6º uniforme, que é o 7º com manga comprida, no frio; 17º, que é o uniforme "homem-bala", para formaturas; 5º uniforme, que é um terno azul escuro, para eventos formais -, mas esses eram os mais usados no dia a dia.
A troca de uniforme enquanto evento singular acontecia, via de regra, para punir um esquadrão - ou todos os esquadrões, o Corpo de Alunos inteiro - por algum malfeito, que podia ir desde o sumiço de um celular até alguém passar merda na parede. Funciona da seguinte maneira:
O esquadrão - ou esquadrões - é colocado em forma no pátio. Toma esporro, esporro, esporro, paga flexão, toma esporro. Depois disso, um oficial, aquele que está comandando a zorra toda, informa que a turma tem X minutos para ir até o alojamento, colocar o uniforme Y, e estar de volta em forma no pátio. Em seguida o Fora de Forma era comandado e uma multidão de corpos ia correndo, batendo-se aos cotovelos, em direção ao alojamento para cumprir a missão quase impossível.
X minutos eram algo como cinco, seis, sete minutos. A troca podia ser do 7º para o 10º camuflado. Do 10º para o de educação física. Do 7º para o homem-bala. Mais raramente podia ser determinada até a troca de uniforme para o 5º, de gala.
As primeiras tentativas eram sempre frustradas. Não dava tempo. Esporro, esporro, esporro, flexão, esporro. X minutos, Y uniforme, Fora de Forma, Marche, correria, cotovelos, troca de uniforme, volta, entra em forma.
Repete.
Até conseguir.
Quer dizer, eu acho que conseguíamos. Em algum momento o oficial responsável dizia que o tempo havia sido cumprido. Terminava o esporro. E liberava o esquadrão.
Agora você me pergunta: qual a lógica pedagógica por trás disso?
Bom, eu posso te dizer que não tem nada que ver com Paulo Freire, isso é certo.
Talvez estivessem pensando num contexto de guerra, a necessidade de ser proativo, veloz, audaz, engenhoso.
Era difícil trocar de uniforme nesse tempo, arrumar a farda, colocar as platinas, plaqueta de nome, sapato, coturno, o que quer que fosse. Cada farda tinha os seus detalhes.
Esse massacre do tempo é uma tradição para os militares.
Talvez você esteja pensando que eu, após essa experiência, seja hoje em dia uma pessoa muito organizada, disciplinada, com uma agenda impecável.
Não é bem assim.
A lógica irracional do apressado
Já faz um bom tempo que eu saí da Aeronáutica. Eu diria que sim, eu sou disciplinado em alguma medida, porque eu tendo a fazer o que eu preciso fazer até o fim. Eu não me atraso quando marco com alguém, não deixo ninguém na mão, se digo que vou fazer algo, eu faço o que eu disse que faria.
Não sei até em que medida isso é resultado da EPCAR ou da minha personalidade. A soma dos dois, de repente.
O que eu sou, e já falei sobre isso aqui, é um enorme dum ansioso fodido.
No tribunal, onde eu trabalho, por cinco vezes no mês você pode marcar o ponto com até quinze minutos de atraso, sem desconto ou necessidade de reposição. Nos primeiros meses eu chegava cinco, dez minutos antes. Isso foi mudando. Mudando. Mudando. Fui testando os limites, vendo que horas era possível acordar, quando podia sair de casa.
Até que chegou o momento em que eu usava todos os meus quinze minutos de atraso mensais e mais o atraso com reposição. Nunca me atrasei uma, duas horas. Era sempre cinco, dez minutos. Eu via (vejo) que estava chegando o horário, enrolava mais um pouquinho, e só aí saía de casa, já consciente de que estava atrasado, e essa consciência me deixava ansioso e apressado.
Essa é a lógica irracional do apressado.
Quando estou com pressa, faço tudo correndo, é óbvio. E ao fazer tudo correndo acabo deixando de fazer algumas coisas, e me atraso mais. Incontáveis vezes entrei no elevador e percebi que esqueci alguma coisa, e o atraso de um minuto virou cinco.
Apressado come mesmo cru, vez ou outra.
Trocar de uniforme centenas de vezes na EPCAR não resolveu esse problema. Imagina na guerra?
E o combo pressa + ansiedade é uma combinação bastante perigosa.
Veja o Shopping Light, por exemplo. O Shopping Light fica bem no centro de São Paulo, no edifício Alexandre Mackenzie. É um prédio bonito, antigo, na esquina do Viaduto do Chá.
Esse prédio poderia ser várias coisas, abrigar vários eventos, atividades, opções culturais. Porém, em se tratando de São Paulo, é claro que ele é um shopping.
Tudo é um shopping.
Até o que não é um shopping logo vai ser um shopping.
Você de repente vira um shopping também.
Como se vê na imagem, não é um edifício muito grande horizontalmente. Para abrigar um shopping, é preciso usar bem cada um dos andares. São cinco andares, mais o intermediário, com lojas. Na cobertura há um café / restaurante.
Um shopping com sete opções de andar parece contra intuitivo, porque exige uma quantidade absurda de escada. Subir e descer de escada rolante toma um tempo significativo no Shopping Light, restando a opção dos elevadores.
Aí tem um problema. O Shopping Light, sendo antigo, tem elevadores antigos, que não são utilizados - só um ainda funciona, para ir do estacionamento para a cobertura, direto, sem parar. Para resolver a questão, instalaram três elevadores novos. Um de serviço, dois sociais.
Se você é capaz de visualização matemática básica, você percebe que o centro de São Paulo (MUITA GENTE), mais um Shopping (que, em São Paulo, atrai MUITA GENTE), e apenas três elevadores que podem subir, no máximo, dez pessoas de cada vez (POUCA GENTE) resultam em filas e demora.
E demora. Demora pra cacete.
Toda vez que eu vou no Shopping Light e preciso esperar o elevador eu fico impaciente. Além de demorar, as luzes que indicam se o elevador está subindo ou descendo são defeituosas. Às vezes o elevador passa direto. É um inferno.
Só que além dessa demora, os elevadores do Shopping Light (e de qualquer lugar com bastante gente) atraem um fenômeno incrível que é executado especialmente pela pessoa apressada.
Veja, existem três pessoas ao chegar no elevador:
A primeira é aquela que vê se o botão para cima (se você quer subir) ou para baixo (se você quer descer) já está apertado; se está, ela só espera; se não está, ela aperta.
A segunda é aquela que, independentemente de o botão estar ou não apertado, vai lá e aperta. Essa segunda pessoa ainda pode integrar um subgrupo, que é aquele que acha que o botão de chamar o elevador também é uma espécie de controle de velocidade. Se o elevador demora, ela vai lá e aperta o botão desejado dezenas de vezes, como se isso fosse fazer o pedaço de metal que carrega gente para cima e para baixo se materializar naquele andar.
E tem a terceira pessoa. A terceira pessoa é o ápice do apressado, que faz tudo correndo, mas que também é um burro de marca maior, porque ele, no fim, só se atrasa. A terceira pessoa ao ver que o elevador não chega logo, vai lá e aperta o botão que aponta para a direção CONTRÁRIA a que ela quer seguir. Se quer descer, aperta o de para cima também. Se quer subir, aperta o para baixo. Se você olha para essa pessoa, ela diz: aí ele chega mais rápido. Talvez ela tenha razão. Talvez o elevador que estava subindo pare naquele andar, mas se ela quer descer ela vai ter que esperar o elevador subir tudo antes de descer. Ou seja, o tempo é o mesmo. Mas não é só. A terceira pessoa nunca está sozinha. Em cada andar tem pelo menos um que faz a mesma coisa. E tal qual um efeito cascata, o elevador passa a parar em todos os andares para que pessoas que não querem ir na direção em que ele está indo embarquem. Quando ele chega no destino final e começa fazer a viagem contrária, ELE PARA OUTRA VEZ EM TODOS OS ANDARES. Porque agora era a hora certa de entrar.
Eu, como um ansioso compulsivo, entendo que é enervante ficar parado esperando um elevador chegar. O que eu não entendo é tomar uma decisão que vai, no fim das contas, te fazer esperar mais tempo, só que agora dentro do elevador. Talvez seja a mesma lógica de quem vai para a fila do embarque antes de ser chamado, que levanta da poltrona antes de ter como sair, e assim segue.
A minha vontade é pegar todo mundo que faz isso, colocar em forma e mandar trocar de uniforme.
Só de sacanagem.
Por fim, o merchan
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