Fim. Ou: o começo de uma outra vida
A declaração de fim da emergência pela COVID-19 e o tempo que passou
Depois de três anos, a Organização Mundial da Saúde decretou o fim da emergência de saude em virtude da COVID-19. A vida, desde então, não é mais a mesma, ainda que tudo o que quiséssemos fosse, quando a pandemia começou, retomar a vida que tínhamos. Logo ficou evidente que seria impossível:
a vida como conhecíamos havia acabado.
Era a morte da inocência — de que as coisas permanecerão como elas são pelo simples fato de serem por tanto tempo. Era a morte do ser. É a ascensão do estar. A evidência de que tudo é transitório — nós, a vida, o ato de sair na rua e respirar. Nada está garantido, nada está dado: é preciso atenção redobrada, dia após dia.
Eu me lembro dos dias antes do caos. Estávamos no treino de basquete da São Francisco, numa quarta-feira, discutindo se o jogo do final de semana seria ou não cancelado. Se haveria lockdown e quanto tempo duraria: 15 dias, um mês?
Na sexta, o jogo foi cancelado. No dia anterior, o Tribunal mandou todo mundo para casa. Um, dois meses?
E assim tudo foi desmoronando: aulas remotas, trabalho remoto, treinos cancelados, academia, comércio, tudo fechado. E assim iniciou um período em que eu fiquei quase três meses seguidos sozinho dentro de um apartamento de 30m² no centro de São Paulo, muito perto da absoluta loucura.
Três anos depois, a emergência de saúde se encerrou. Já há algum tempo retomamos nossas atividades. O meu certificado de vacina está enquadrado: dia após dia meu coração se dilacerava ao ver as notícias; ao ver a inação dolosa do presidente; ao ver o futuro se despedaçar. Quando enfim chegou a minha vez de ser vacinado, foi como se eu pudesse respirar de novo. Como se minha cabeça tivesse, enfim, saído debaixo d´água. Como se fosse possível viver outra vez — uma outra vida, uma vida nova, mais valiosa, mais sensível, mais profunda.
Durante a pandemia participei de um concurso promovido pela Embaixada da França, em parceria com o Coletivo 614 e a FLIP 2020, que tinha uma temática comum: habitar e repensar nosso espaço cotidiano posto à prova pelo confinamento.
Meu texto, inspirado pela foto de capa desta newsletter, foi um dos premiados. A sua versão revisada vem a seguir.
Rua João Adolfo, 75, apto.114, centro da cidade
Perdi meu relógio de pulso, não que isso importe muito, não importa, é verdade, quase nada. Amanhece com o sol entrando pela janela do quarto todo tímido, de atravessado, o suficiente para que a cortina velha não seja capaz de conter a luminosidade. Preciso comprar uma máscara de dormir. Depois, lá perto da hora do almoço, a cama vira uma piscina de sol, não dá para deitar. Fim da tarde os raios solares entram na posição perfeita para secar a roupa do varalzinho de chão que fica na parede em frente a janela, depois da cama. A noite é tudo escuro e aí é só começar outra vez.
De relógio não preciso, basta ir até o quarto. Mas tem que ser no quarto. Na sala, que é também a cozinha, o sol não chega. Há só uma janela. E entre a janela e a sala está essa parede de drywall com um quadro do David Bowie. Pensei em marretar o drywall, mas o proprietário ia dizer o quê? Que eu tô ficando louco? Sim, é claro. Por enquanto fica o David Bowie ali.
Esse apartamentozinho de cubículo que a gente toda convencionou chamar de studio nos sites de imóveis me pareceu ideal à primeira vista. Um espaço bem no meio da cidade, do lado de um metrô, a dez minutos de passadas largas da Faculdade e uma, duas estações do trabalho, esse mercadinho vinte e quatro horas no térreo, muito que bem. Preciso comprar leite e ovos. Não posso esquecer. Pareceu perfeito. Aluguei, botei minhas coisas para cá, fui enchendo o espacinho, os livros pelo chão, na mesa, na divisória da cozinha sala, ao lado da cama, a tevê, o computador, os pares de tênis amontoados na entrada. É um teto, um studio, no coração da cidade.
Assim foi por bastante tempo, faz o quê, quatro anos quase? Logo pela manhã me meto no jeans e na camiseta, tomo café e vou para a linha vermelha, ouço música no caminho, olho a gente toda que passa todos os dias e não pareço nunca reconhecer o mesmo rosto duas vezes, desvio o olhar de quem dorme nas escadinhas perto do metrô, sinto vergonha de desviar o olhar, sinto-me estúpido por sentir vergonha, chego no trabalho, trabalho, saio do trabalho, vou para a faculdade de metrô, saio da faculdade e às vinte e três atravesso o viaduto com as mãos no bolso e com os pés rápidos para chegar em casa e me proteger do perigo. Que é a rua, a rua é perigosa.
Tudo isso deixou de fazer sentido. Faz setenta e dois dias.
Pensei primeiro que era coisa de quinze, vinte dias, um mês no máximo. Arrumei o computador com um segundo monitor, comprei um monte de frango empanado congelado e comecei a rotina de dormir e acordar e dormir e acordar e dormir e acordar sem sair pela porta do apartamento, a não ser para comprar mais frango empanado.
Não foi coisa de quinze, vinte dias, já está evidente. Eu me enganei.
Esses apartamentozinhos que se convencionaram chamar em prol do valor do aluguel pelo nome de studio são inhos, inhos, mesmo. Os dias foram se passando e parece que fui crescendo sem mudar de tamanho, só não cabendo, cada vez mais, dentro do apartamentozinho. A pia demonstrou uma capacidade quase mágica, uma propriedade mística de se manter cheia de louça suja independentemente do que eu fizesse. Frangos empanados se mostraram uma opção pouco longeva. Minha azia voltou. Cortei o refrigerante. Substituí o frango empanado por peito de frango grelhado. A azia melhorou.
Afastei o sofá e a mesa, cada um para um canto, tudo que na verdade existe nessa sala, e fiz do espaço vazio, o que, uns três, quatros metros quadrados, uma espécie de academia funcional. Preciso comprar um tapete de yoga. Minhas toalhas estão ficando imundas. Nesse momento eu já havia perdido o relógio. Acordava com o sol, comia, trabalhava até terminar de fazer o que me cabia, ligava a tevê, botava o frango para grelhar, comia outra vez, lavava a louça, reclamava, e aí no fim de tudo me punha a realizar alguma atividade física. Na sala, sem janelas, não há presença do tempo. Todo tempo é o mesmo tempo. Tempo parado, imóvel, parece que entre essas paredes do apartamentozinho se está apartado do mundo. Que mundo? Enfim. Achei na internet vídeos de treinos especiais para a quarentena e comecei a seguir. Pula, desce, flexão, burpee, pula, desce, flexão, burpee, depois abdominal, abdominal, abdominal, e meu corpo se desfazendo em suor, as paredes cada vez mais próximas, sentia como se fosse capaz de enfiar a cabeça pelo teto de gesso. Até que o interfone tocou. Pausei o vídeo e fui atender. Como ficou a mensalidade da academia? Preciso ver isso.
A voz da portaria eletrônica estava toda constrangida ao dizer que os vizinhos do apartamentozinho logo abaixo do meu reclamaram do barulho. Alguém tá pulando, disse a voz da portaria eletrônica. Eu não sabia que horas eram. Da sala não dá para saber. Que horas são, perguntei, e a voz respondeu que já se passava das dez. Da noite. Agradeci e desliguei. Entrei no chuveiro e quis gritar, mas não gritei, porque era tarde e os vizinhos já tinham reclamado uma vez, e que importa gritar se ninguém pode ouvir?
No prédio da frente alguém começou a contar os dias na própria janela usando fita crepe. Começou no dia trinta e nove. Ou foi a primeira vez que eu vi, no dia trinta e nove. Fiquei comovido. Passei a acompanhar a contagem e reparei que geralmente atualizavam o número mais para o fim da tarde, quando o sol estava perfeito para secar as roupas. Não tenho muita roupa para secar. Uso as mesmas três peças quase todo o tempo. Verificava a todo momento, pela luz do sol entrando no quarto, se já era o momento de o vizinho ter atualizado sua contagem. Quando acontecia eu me enchia de esperança.
Algo como estarmos juntos. Algo como encontrar o mesmo rosto duas vezes no metrô. Algo como finalmente não desviar os olhos.
As paredes do apartamentozinho se alargavam dessa forma, enquanto eu e meu vizinho mantínhamos essa cumplicidade de quem sabe que vai passar, porque tudo passa. A gente não está terminado. E se a gente não está terminado… não é o fim, então não é definitivo.
Só que. Ah. Só que no dia setenta e três, no septuagésimo terceiro dia meu vizinho quebrou nossa promessa jamais feita. Passou o sol da tarde e o número com fita crepe não mudou de 72 para 73. Passou a noite e a nova manhã chegou e não mudou de 72 para 74. O sol foi e voltou e foi e voltou e o 72 permaneceu lá, estampado na janela, imóvel feito pedra pesada sobre mim, sobre todos nós.
Já não sei quantos dias se passaram desde que o septuagésimo segundo dia se tornou todos os outros dias. Não sei que horas são.
Todos os dias são o septuagésimo segundo dia do isolamento. Todos os dias são iguais. Meu rosto se repete no espelho todas as manhãs, ainda que eu deixe de me reconhecer a cada novo reflexo. Me diz, Riobaldo, se é vivendo que se aprende mesmo a viver, o que é que resta para mim, que estou fincado fundo no tecido do tempo? Essas paredes coladas umas nas outras não me deixam muito espaço. Septuagésimo segundo dia.
Viver é muito perigoso — tudo nas mãos do vizinho que conta os dias em frente ao meu apartamentozinho.