Guilty pleasure não existe (ou não deveria existir)
O Instagram inventou uma nova ferramenta para nós nos expormos inadequadamente nas redes sociais, e, como sempre, eu estou all in nessa brincadeira. As figurinhas que você pode responder, participando de uma corrente maior de exposição, é tudo o que o internauta quer:
Pertencimento sem compromisso. Ser parte de algo.
Uma das que me divertiu bastante foi a "Compartilhe com a sua altura". É notório o meu gosto por fazer piada com baixinhos, e sempre que eu posso eu utilizo a oportunidade para tirar um sarro amistoso. Outra figurinha legal foi a do "Gosto musical que ninguém imagina".
Eu compartilhei Miley Cyrus (Plastic Hearts), que é simplesmente fantástico. Também foi interessante ver o que outras pessoas compartilhavam.
Nós formamos, invariavelmente, uma imagem das pessoas que nós conhecemos que, também invariavelmente, não corresponde a pessoa em si. É sempre um equilíbrio contínuo entre essência e representação. Nosso amigo Platão já dizia que a representação da coisa não é a coisa em si, mas Nietzsche veio cheio de ódio para desestabilizar a noção de verdade e de sujeito. Havendo uma dificuldade, talvez intransponível, de chegar ao real (conceito importante em toda a história da filosofia), o pensamento moderno se funda na representação e nos artifícios dessa representação. Nós representamos e somos representados - é um jogo duplo, de se apresentar e de se reapresentar, e, assim, na apreciação pelo outro, construirmos a nós mesmos.
Não surpreende que haja, portanto, um anseio contemporâneo por realidade nas representações - literárias, cinematográficas, midiáticas (BBB, realities no geral), sociais. Por meio de um outro que aparenta representar a realidade, nós, ou ao menos assim parecemos crer, somos capazes de acessar também essa realidade, compartilhar essa realidade.
Assim o Knausgard vendeu milhões de livros.
Enfim. Nesse contínuo lance de representações, a imagem da pessoa não condiz com a pessoa em si, mas se confunde e influencia, em alguma medida, quem essa pessoa é. Por isso é interessante quando alguém expõe algo que contradiz a nossa expectativa.
- Nossa, o Gabriel gosta de Miley Cyrus!
Ou qualquer coisa do tipo.
O que me leva ao ponto seguinte, que é também o ponto principal.
Guilty Pleasure.
Na dinâmica das representações e dos gostos, é comum aparecer o conceito de guilty pleasure, ou um prazer com culpa, que, como o próprio nome sugere, é um prazer que vem junto com um sentimento de culpa.
Isso seria plenamente justificável se o prazer em si envolvesse algo ilegal. Nesse caso, a culpa é um bom mecanismo de contenção. Via de regra, contudo, não é o caso. São prazeres simples, de coisas cotidianas, que as pessoas degustam com culpa por não condizerem com a representação que elas têm delas próprias.
Alguém que gosta de Rock e ouve diva pop no fone. Alguém que gosta de literatura clássica, mas se diverte lendo John Green. Alguém que é machão e curte cerveja artesanal, mas tem vários produtos de beleza. São contradições apenas aparentes, já que, na realidade, não contradizem nada.
"Meu guilty pleasure é comer Z", "meu guilty pleasure é assistir uma série X", "meu guilty pleasure é ouvir o artista Y", "meu guilty pleasure é gostar de ir no lugar W".
Por qual razão nós deveríamos sentir culpa por fazermos aquilo que nos faz bem?
Esse sentimento de culpa não é irrelevante. Ele vem de uma sistemática muito maior da construção do sujeito contemporâneo. A religião, já há muito tempo, tem na culpa um dos seus pilares, que servem bem à disciplina. Mas no caso do guilty pleasure, apesar de haver semelhanças com a "culpa cristã", parece surgir de um fenômeno muito mais atual.
A absoluta exposição da vida e a necessidade de sustentar, publicamente, um personagem, faz com que nós todos assumamos posturas que nem sempre são alinhadas com as nossas próprias vontades. Com a proliferação das redes sociais e de figuras cujo lifestyle passa a ser almejado, nós estamos, mais do que nunca, em constante competição com inimigos fantasmas.
Estamos lutando contra nós mesmos por um objetivo nebuloso.
Queremos o que o outro tem. Queremos a realidade que o outro tem. Queremos não sermos quem nós somos, mas emular a vida do outro, que nos parece, sempre, mais adequada.
Queremos pertencer a este mundo que, de repente, nos é totalmente inacessível.
Assim precisamos negar aquilo que gostamos, porque o que gostamos não é agradável para o público. Assim precisamos abraçar o que não gostamos, porque o que não gostamos é sucesso de audiência. A representação de si deixa de ser um exercício de autoconstrução para ser um exercício de superficialidade. Nada é nosso, tudo é dos outros, a quem nós precisamos agradar.
Em Under the Influence, Keith Richards diz:
Eu sei quem eu sou. Mas sei que as pessoas acham que Keith Richards está fumando um baseado, garrafa na mão, xingando porque precisa comprar mais bebida.
Se há uma coisa que o Keith Richards parece ser é alguém confortável com quem ele é, e também confortável com quem os outros acham que ele é.
Mas nós não somos o Keith Richards. É um processo complexo, contínuo, de aceitação, de respeito por si próprio.
Abolir o guilty pleasure para transformar apenas em pleasure é um bom começo.
https://www.youtube.com/watch?v=yqwYgpnCRGA
mas, como diria a filósofa Cyrus, WTF do I know?