Interpretação de texto sem ler o texto, ou O curso definitivo dos concursos de Gabriel Schincariol Cavalcante, O Famoso Escritor
Você provavelmente já sabe disso, mas se não sabe eu vou te contar: eu sou concursado. Em 2014 eu prestei o concurso do Tribunal de Justiça de São Paulo, e em 2016 eu tomei posse no cargo de Escrevente Técnico Judiciário.
Sabe a história do "primo que passou no concurso"? Então, essa não é a minha história. Quer dizer, é mais ou menos.
A minha história é a do primo que passou na Aeronáutica, saiu depois de três anos, entrou na Universidade pública, passou em um concurso e DE REPENTE, NÃO MAIS DO QUE DE REPENTE, virou um comunista-maconhista-burro, "que pena o Gabriel, né, tanto potencial...". Bom, pelo menos para parte da família esse sou eu - a que ainda está em grupos do Telegram e afins com narrativas psicodélicas sobre o quão bom o Bolsonaro é.
Enfim. Eu sou funcionário público, e eu sempre falo sobre isso nas redes sociais, geralmente para reclamar - reclamar, por exemplo, de o TJSP ter retomado em julho do ano passado o funcionamento presencial e para isso ter fornecido 5 máscaras de pano com um aspecto de fralda para os funcionários; reclamar dos salários corroídos pela inflação e pelo descaso da administração com a base do serviço público; reclamar dos discursos moralizantes que parte da imprensa encampa contra os marajás, os super-salários, os privilégios, quando na verdade esses casos são a exceção da exceção, mas, como é praxe na política liberal-conservadora brasileira, servem de parâmetro para as gloriosas reformas.
Eu reclamo bastante.
Contudo, ser escrevente é o que me faz comer todos os dias. Não é o emprego dos sonhos, mas por enquanto tem me alimentado.
É sobre isso que eu quero falar. Mais ou menos.
Recentemente eu fiz a prova da OAB, e para fazer a prova da OAB eu precisei pesquisar material, cursinho, etc.
(Nota sobre a OAB: se você por acaso for fazer a prova, o caminho é simples - constitucional na segunda fase, curso da Flávia Bahia, seguir exatamente o que ela falar, passar na prova. De nada.)
O algoritmo, por sua vez, fez a festa com esse momento. Calculando a + b, a conclusão lógica foi a de que eu faço parte do grande grupo de concurseiros do Brasil. E fazendo parte do grande grupo de concurseiros do Brasil, o conteúdo que me interessa é o conteúdo voltado para concurseiros.
Apesar de eu ser, de fato, concursado, eu não sou um concurseiro. Há aí uma diferença grande, mas não grande o suficiente para o algoritmo notar, e foi assim que o seguinte vídeo me apareceu nos recomendados:
Devo confessar que eu fiquei curioso. Eu fiquei bastante curioso. Quando eu cheguei nos parênteses, eu fiquei muito curioso.
91% das questões de interpretação - SEM LER O TEXTO.
Fiquei curioso e preocupado.
Eu entrei no vídeo, o que satisfez o algortimo e fodeu de vez as minhas recomendações. Mas eu sou movido pela curiosidade.
O Mateus Andrade, que eu não conheço, se apresenta como coach e mentor de concurseiros. Ele começa o vídeo explicando que as bancas estão investindo cada vez mais em questões complexas, aliadas com menor tempo para resposta. Segundo o Mateus, o interesse das bancas não é na inteligência e sim na velocidade do candidato.
Assim, prossegue o Mateus, a utilização do método que ele vai apresentar a seguir é fundamental para ser aprovado em concursos com vários textos e muitas questões de língua portuguesa. O exemplo que ele usa é o concurso do TJSP.
Long story short, o que ele sugere é que você leia as questões primeiro e verifique as alternativas, usando o senso comum, para ver se não tem nada muito estranho. É possível, ainda de acordo com o Mateus, acertar a maior parte delas sem ler uma linha sequer do texto de apoio. Aquelas que você não for capaz de resolver, basta voltar ao texto já com a questão em mente e procurar exatamente pela resposta.
Boom. Ganhou tempo, acertou a questão.
Brilhante.
Em alguma medida o Mateus tem razão, várias questões podem ser respondidas de maneira geral, mas tudo isso me parece revelar um cenário um pouco mais preocupante. Os comentários vão quase todos no mesmo sentido: adorei a dica, odeio ler os textos; muito bom, eu nunca entendo bem o texto depois de ler; leio o texto todo e acho confuso; o melhor jeito é ler as questões mesmo, o texto só embaralha as ideias.
Na média, ao menos na minha curta experiência com provas e vestibulares, os textos são bem claros nessas situações. Porém, nós enfrentamos um déficit educacional e de capacidade de leitura enorme. É um problema mais grave e com implicações muito mais profundas do que o desempenho do concurseiro. Interpretar é um desafio, e considerando que o mundo todo se revela por meio da linguagem e é compreendido por meio da interpretação, se a nossa elite intelectual decifra 91% desse mundo sem ao menos ler o texto, talvez a notícia do futuro seja desanimadora.
Continuando.
Fui fuçar um pouco mais e o Mateus, que eu não conheço, ressalto, aparentemente ganha a vida assim, dando dicas e aulas e mentoria e coaching para concurseiros. Suas principais credenciais são as aprovações em primeiro lugar no concurso de Escrevente e em primeiro lugar no concurso de Fiscal de Tributos. É justo, já que para o concurseiro o Santo Graal é a aprovação, então o aprovado é aquele que já trilhou o caminho, que venceu a batalha. Eis uma diferença entre o concurseiro e os demais cidadãos do mundo: o concurseiro enfrenta as provas como uma luta, como uma guerra, em que é preciso preparo e dedicação, é preciso Força, Foco e Fé, e a coroação é a nomeação, a posse; o concurso deixa de ser um instrumento de seleção para um bom emprego, com estabilidade, para se tornar um medidor da sua capacidade humana, para se tornar o passaporte para uma vida diferente.
Como eu disse, é o cargo de escrevente que me alimenta, mas é só um emprego, e a prova foi apenas uma das etapas necessárias para ocupar esse cargo.
Voltando ao Mateus. Com mais de 330 mil inscritos, o canal dele - que não é, nem de longe, um dos maiores do nicho concurseiro - é recheado de vídeos como o do Interpretação sem Ler, com dicas objetivas sobre as provas, misticismos comerciais (Como Usar a LEI DA ATRAÇÃO para Manifestar Seus Sonhos [4 PASSOS SIMPLES]), platitudes (Você NÃO vai ser Aprovado no TJSP enquanto não entender ISSO!) e orientações morais e supersimplificadas (Hábitos Responsáveis pelas Minhas 6 Aprovações em Concursos Publico), tudo orientado para o objetivo final que é, claro, a APROVAÇÃO.
Eu estou certo, e falo isso de maneira sincera, que o Mateus ajudou muita gente com os seus vídeos. Existe uma razão para conteúdos que simplificam situações complexas e oferecem conforto para quem está desconfortável serem tão rentáveis - seja no YouTube, seja no Mercado Editorial, seja no Mercado Profissional. As pessoas querem ouvir uma palavra de incentivo, querem alguma garantia de que vai dar certo, de que seguindo 7, 8, 9, 10 passos, eles vão chegar lá. É melhor lidar com uma vida de resultados garantidos, cedo ou tarde, do que com uma vida em que a probabilidade do insucesso é bastante grande.
O nicho concurseiro não para de crescer, e com o aumento da pobreza no Brasil o crescimento vai ser ainda mais acelerado. Da mesma forma que o Mateus vende o seu conteúdo na internet, outros milhares de cursinhos / coaches / mentores / professores / gurus seguem o mesmo caminho, cada um com uma abordagem diferente. É um grupo diverso com algo em comum: o eterno interesse por reinventar a roda.
Com ajuda do algoritmo, e de um amigo que está prestando concursos, já vi muita coisa: acesso eterno ao conteúdo do cursinho por um preço especial (o que me parece, e eu posso estar errado, um contrassenso, já que a ideia do cursinho é justamente te aprovar o mais rápido possível, então ter acesso para sempre pode ser um mau sinal), métodos inovadores de aprendizagem em que ler apostila e assistir aula são parte do passado, reconfiguração do seu cérebro para um mindset vencedor, etc., etc., etc.
Ao mesmo tempo em que os instrutores crescem, as jornadas do herói se proliferam pela internet. Muito concurseiro cria perfil nas redes sociais apenas para relatar sua própria jornada, o que pode ser positivo por um lado - há um senso de pertencimento, uma comunidade, em que as agonias são diluídas com outros concurseiros -, mas que traz também efeitos não tão positivos. Muita gente fica ansiosa, faz dessa jornada do herói a razão da sua própria existência.
Para a guria concurseira, por exemplo, a felicidade parece residir em um futuro em que o seu cafézinho será acompanhado de uma PISTOLA. O concurso - o estudo, nesse caso - é orientado para isso, um momento posterior em que todo esforço será recompensado. O estudo é meio, nunca fim. O fim é o cargo. O fim é a felicidade indubitável que será atingida com a aprovação.
Mas não é assim que funciona.
Não é assim que funciona por duas razões:
1. na ampla maioria dos casos, ser aprovado em um concurso realmente traz uma alegria momentânea, mas os problemas de antes vão, via de regra, permanecer na sua vida, porque não existe ponte para a felicidade;
2. por mera questão matemática, é mais provável que o concurseiro não seja aprovado do que ele seja, porque não tem vaga para todo mundo, e quando o concurso vira o objetivo de uma vida, a reprovação significa, em parte, falhar na vida, e essa é uma realidade difícil de encarar.
Eu digo isso por experiência própria.
Eu não prestei o concurso do TJ com essa mentalidade, mas eu fiz a prova da EPCAR, a Escola Preparatória de Cadetes-do-Ar, lá em 2011, pensamento exatamente como a guria concurseira. Eu ficava o dia inteiro nas comunidades do Orkut da EPCAR falando com outros candidatos, resolvendo questões, postando foto de avião e de arma e falando mal do PT na internet.
Eu tinha certeza absoluta, aos 16 anos, de que a minha felicidade, a minha vida futura estava atrelada a aprovação na EPCAR, que é uma prova difícil e com uma concorrência absurda.
Na segunda tentativa, eu passei.
Em 2012 eu me tornei o Aluno 2012/086 Gabriel Cavalcante, do Esquadrão Ares. De 2012 a 2014 os demais colegas do meu esquadrão me consideravam uma pessoa inteligente, bem articulada, com opiniões sensatas. De 2012 a 2014 eu percebi que a minha felicidade definitivamente não estava lá. Que era preciso sair de lá. Que era preciso viver outra vida, alguma vida.
Foi assim que em 2014 eu prestei a prova do TJ. Fiz FUVEST. Saí da Aeronáutica. E mais tarde me tornei, para a maioria dos colegas de esquadrão, um comunista-maconhista-burro, "você já foi inteligente, cara", porque critico o Bolsonaro publicamente, desde antes da eleição, e disse que a EPCAR (e as Forças Armadas no geral) presta um desserviço pro país. Essa é outra história, para outro momento.
Tudo isso para chegar no ponto principal, que é o curso que eu vou começar a oferecer.
Após conhecer o Mateus, eu percebi que posso capitalizar a minha aprovação no TJ e na USP, junto com o fato de eu ser um Famoso Escritor - esse último servindo apenas como argumento de autoridade.
Bom, eu não passei em primeiro em nada. Na verdade, eu fiquei em quinhentos-e-tralalá no Tribunal e quase não tomei posse, porque não vi que tinha sido nomeado e só descobri depois que a chefe do RH me ligou e disse "meu filho, você não vai se manifestar sobre a vaga?". Na USP eu passei na 4ª lista para a Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, com muito mais sorte do que competência.
Porém, o que importa é entrar, eu acho.
Portanto, tendo tais aprovações na bagagem, mais a aprovação da OAB, é evidente que eu sou capacitado e apto a ensinar os outros a como conseguir a aprovação.
Como eu passei no TJ? Um colega da EPCAR avisou a mim e ao Massardi, meu amigo e também ex-aluno da EPCAR, que ia prestar o concurso do Tribunal e que nós deveríamos fazer. Nos inscrevemos na última hora. No mês anterior a prova, ainda em Barbacena, eu e o Massardi imprimimos toda a legislação do edital e lemos, de ponta a ponta - o método inverso do Mateus Andrade, aqui é interpretação com leitura. Não dava tempo de estudar mais nada, então o foco foi esse, ler as leis e tentar lembrar o máximo possível do que foi lido, e no resto confiar no talento.
Fiz a prova. Tentei lembrar o máximo possível do que eu li. Acertei 84 de 100, graças a Português e Matemática.
Não parece uma história incrível, porque não é.
Passar na FUVEST foi a mesma coisa. Eu me baseei quase integralmente na minha experiência com leituras diversas e tentei estudar, no pouco tempo disponível, aquilo que eu sabia menos. Só havia um jeito de eu passar, e esse jeito envolveria ler e interpretar cada linha da prova, cada pergunta, e colocar na resposta a melhor conclusão para essa interpretação, arrancando um pontinho de cada quesito, mesmo que nunca integralmente.
Funcionou. Quase não funcionou, mas funcionou, e na 4ª lista, na raspa do tacho, eu fui chamado.
Então esse vai ser o meu curso, dividido em três módulos:
Módulo 1: é preciso ler.
Módulo 2: é preciso estudar.
Módulo 3: é mais provável dar errado do que dar certo.
O custo do curso e da mentoria, que consistirá em me ouvir repetir isso toda hora, será de R$10.000, pagamento único. As vagas são limitadas.
Você tem interesse?
Não?
Certeza?
Que bom. É assim que deve ser.