O café que sobreviveu
"Viajou.
Conheceu a melancolia dos paquetes, o frio despertar sob a tenda de campanha, o atordoamento das paisagens e das ruínas, a amargura das simpatias interrompidas.
Voltou.
Frequentou a sociedade, e teve novos amores. Mas a permanente lembrança do primeiro tornava-os insípidos; e além disso, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, já não existia. Também suas ambições espirituais tinham diminuído. Passaram-se os anos; e suportava a ociosidade da sua inteligência e a inércia do seu coração."
É assim que começa um dos capítulos da parte final de A Educação Sentimental, de Flaubert. Esse capítulo vem logo depois da cena em que Senécal (antigo amigo de Frédéric, o protagonista), como policial, mata Dussardier (outro antigo amigo de Frédéric) com um golpe na cabeça. Dussardier primeiro grita: Viva a República!
Eu posso estar errado também é cultura. Se você não entendeu nada, vai ler o livro. Se você não quer ler o livro, dá um Google. Se você não quer fazer nada disso, tudo bem, não é tão importante assim.
Eu só estou falando sobre isso porque esse expediente estético utilizado por Flaubert - o fim de um capitulo com uma cena trágica e o começo do outro com períodos curtos, com enorme aceleração temporal - ficou conhecido como o espaço em branco na literatura.
Para entender melhor: vários autores discutem o romance do século XX como um romance indissociável das questões temporais; há, no romancista do século XX, uma fissura pelo tempo, fruto do Zeitgeist - o espírito de uma época - que envolve o indivíduo apartado do mundo em que vive, porque esse mundo, de repente (não tão de repente: primeira Guerra Mundial, Hitler, ascensão do capitalismo financeiro, desastres ambientais, tecnologia, etc.), foi dotado de uma enorme velocidade, em que nada mais permanece.
Pois então. O espaço em branco é essa súbita aceleração, a representação dessa não permanência. Um não-dito que diz muito.
Mas por que eu estou falando disso?
Porque hoje eu saí de casa às 16 horas (no meio do expediente, perdão, TJSP) para andar na rua e tomar um solzinho. Desde segunda eu não saio para ver a rua (hoje é sexta, para referência), só para tirar o lixo. E na rua eu decidi ir até um café perto da São Francisco onde eu, antes da pandemia, ia todo horário de almoço tomar um espresso e ler um pouco. Às vezes eu comia uma torta de caramelo.
Nesse último ano e meio, a minha sensação recorrente é de estar dentro do espaço em branco. Tudo acelerado, a vida suspensa. Aquela vida de ir todo horário de almoço no Vintage não existe mais.
Muita coisa não existe mais. Eu me deparei com essa foto esses dias:
Muitos lugares não existem mais. Muitos lugares não estão vivos.
Os lugares não estão vivos, é claro. Os lugares são as pessoas que ocupam os lugares e muitas pessoas já não estão mais vivas.
Eu fui andando até o Vintage pensando nisso. Eu fui andando até o Vintage com medo do Vintage não existir mais, ter sido engolido pelo enorme vazio que tomou conta de nós.
Mas o Vintage ainda existe. Cheguei lá e estava aberto. Entrei, olhei os salgados, os doces. Não tinha torta de caramelo, mas tinha torta holandesa. Pedi um pedaço e um café espresso, para viagem. Fiquei contente por retomar alguma vida do passado.
A dona do lugar cortou um pedaço da torta, colocou numa embalagem, tirou o café num copo descartável, tampou o copo e me entregou os dois.
Fui para o caixa. Disse que era um espresso e uma torta holandesa. O dono do lugar apertou uns botõezinhos para registrar no sistema o pedido e me disse:
Ficou 20 reais.
FICOU 20 REAIS.
Ficou 20 reais, puta que pariu, um café e um pedaço de torta.
Paguei no débito e saí incrédulo.
Quando cheguei em casa, o espresso estava frio e a torta holandesa não era tão boa assim.
Viajou.
Conheceu a melancolia dos paquetes, o frio despertar sob a tenda de campanha, o atordoamento das paisagens e das ruínas, a amargura das simpatias interrompidas...- gsc