O coração da narrativa - Eu posso estar errado - Edição Nº35
A elipse calculada da literatura de ficção, ou: por que lemos histórias inventadas, ou: o que está em jogos nas histórias reais e inventadas?
Um bom livro era mais ou menos assim: a voz narrativa em terceira pessoa, onisciente, descrevendo de maneira imparcial os eventos que acometem um herói, ou um grupo, ou uma cidade, ou algo do tipo. Uma câmera, acompanhando de longe a vida dos personagens, pelo exterior.
Depois um bom livro era mais ou menos assim: a voz narrativa em primeira ou terceira pessoa, mas sempre sob o signo da desconfiança, uma voz em quem não se pode confiar, porque apesar de ela estar contando uma história, ela não sabe de tudo, ela não finge saber de tudo, ela não possui controle sobre tudo. A história vem de fora, nos diálogos, mas vem também de dentro, na consciência.
E então um bom livro agora é mais ou menos assim: a compreensão profunda de que não é possível saber e fixar o real, e que contar histórias é impossível, mas ainda assim contamos.
E temos os livros que não são bons, e aí eles são chamados de livros necessários, o que geralmente significa dizer que o livro é, em si, uma merda, mas carrega algum nível de importância (auto-atribuída) em decorrência de quem escreveu, ou das condições inerentes a quem escreveu.
O que eu fiz acima foi uma resumo reducionista e bastante grosseiro dos movimentos literários, que serve somente para introduzir o assunto da literatura de ficção.
Antes do romance moderno, com sua ascensão a partir da primeira guerra mundial e a crise dos anos 20, a noção de realidade na literatura estava atrelada a um ideário de reprodução. O realismo, nessa linha, advinha de reproduzir o real a distância, de fora. O realismo, nessa linha, partia do pressuposto de que era possível compreender e controlar a noção de tempo, de espaço, e que assim era possível captar essas noções que regem o mundo por meio do texto literário.
Destruída qualquer ilusão de controle do homem sobre a realidade (e sobre o tecido temporal que a compõe), os modernos passam a representar a realidade de outra maneira: não de fora, mas de dentro. É impossível precisar o mundo que nos cerca, e o que resta é o mundo que experimentamos.
Virginia Woolf, em Ao Farol, alterna entre a voz narrativa em terceira pessoa, que reproduz as relações da família Ramsay especialmente a partir da matriarca Sra. Ramsay, e uma espécie de voz da consciência, que se imiscui nos pensamentos das personagens. O resultado não é uma obra coesa, mas um produto narrativo que desafia na medida em que é construído: vamos tendo contato aos poucos com a história, vamos recebendo fragmentos de informação.
O romance começa no meio de uma conversa na qual somos introduzidos abruptamente:
"Yes, of course, if it's fine tomorrow," said Mrs Ramsay. "But you'll have to be up with the lark," she added.
Levaremos alguns parágrafos para entender do que a Sra. Ramsay está falando com o seu filho. Depois, no período de transição - o espaço em branco - que representa a Grande Guerra, as mortes vêm como relatos quase irrelevantes:
[Mr Ramsay, stumbling along a passage one dark morning, stretched his arms out, but Mrs Ramsay having died rather suddenly the night before, his arms, though stretched out, remained empty.]
O falecimento da personagem central da primeira parte do livro nos é entregue indiretamente: o Sr. Ramsay a procura numa manhã escura, mas os seus braços continuam vazios.
Em Os moedeiros falsos, de Gide, o narrador interrompe a história na metade do caminho para reclamar dos seus personagens. Reclama do caminho que as coisas estão tomando, retoma sua irritação com a criação. O capítulo se chama, sem cerimônias, O autor julga suas personagens:
Se um dia me acontecer de inventar outra história, não mais deixarei que a habitem senão caracteres de boa têmpera, que a vida, longe de embotar, aguça. Laura, Douviers, La Pérouse, Azais... que fazer com toda essa gente? Eu não os procurava; foi seguindo Bernard e Olivier que os encontrei em meu caminho. Pior para mim; doravante, estou ligado a eles.
Não se controla mais a narrativa; a narrativa controla a si.
Avançando no tempo, quando chegamos no que a crítica chama de pós-modernidade, toda a problemática da velocidade do tempo, da destruição do espaço (o espaço físico, apesar de existir, é desfigurado; tudo se dá a partir da globalização das relações) e da fugacidade da realidade ganha uma dimensão hipervalorizada.
Superou-se a discussão sobre possibilidade de reprodução do real vs. representação do real, e agora se caminha para a noção de que o real é, em si, uma ideia impossível. O real é uma entre tantas outras construções da ficção.
Afirmar isso não é gratuito, nem vem sem consequências: do moderno para o contemporâneo, na mesma medida em que as histórias sobre vivencias, sobre experiências, sobre vidas reais ganharam enorme repercussão (tanto nos gêneros literários como nos gêneros midiáticos, a partir de reality shows, redes sociais, influencers, etc.), a natureza do que é real passou a ser discutida.
O que diferencia um texto autobiográfico literário e um romance?
O que diferencia uma memória de uma invenção?
Estamos, no fim das contas, todos contando histórias.
Uma das muitas respostas possíveis reside na noção de contrato. Essa não é uma noção exclusiva do contemporâneo. Há muito se constrói a ideia de que entre leitor e escritor há sempre um contrato, um pacto, o que Didion chama de "contrato para surpreender e ser supreendido". Esse contrato é o que garante a possibilidade de existência real do texto (existência real no sentido de existência no mundo, de ser lido). O escritor pede ao leitor que suspenda sua incredulidade durante o processo de leitura, e que preencha os espaços deixados pelas elipses calculadas no texto, concorrendo, assim, para a produção do sentido.
A suspensão de incredulidade é fundamental, porque, como eu já falei antes, a narrativa não é o real. A narrativa de ficção, então, está fundada justamente no fato de não ser uma representação de um evento que ocorreu no mundo concreto. Ela se alimenta do mundo concreto, em especial dos signos comuns do mundo concreto, para se fazer compreensível, mas ela não possui nenhuma relação de obrigação com o mundo concreto.
Sem a suspensão de incredulidade, nenhuma fantasia seria possível. Nenhuma história de zumbi. Nenhum mundo fantástico. Mas não só: nenhuma história inventada seria possível.
A narrativa de ficção existe em si, mas não fora de si. E procurar semelhança entre o texto ficcional e o mundo real é um exercício contraditório e, no fim das contas, prejudicial para a própria experiência de leitura.
Só que isso fica mais difícil quando as narrativas contemporâneas são tão fundadas na experiência, na vida em si. Lemos um livro de ficção e o chamamos de necessário, porque ele aborda questões relevantes do contexto social em que vivemos. Mas esse livro, ainda que aborde questões relevantes do contexto social em que vivemos, é um livro sem nenhum outro mérito. O contrato não é de surpreender e ser surpreendido: é de outra natureza. É um contrato de submissão: veja, o que eu estou te dizendo é importante, e por isso você está de mãos atadas.
E o problema cresce quando o livro não é de ficção, quando o autor nos diz, logo de cara, que aquela é a sua história, ou uma história que ele diz ter acontecido. É o que Lejeune chama de pacto autobiográfico. De antemão, estamos cientes, por força desse pacto, essa força contratual entre o nome do autor na capa e o nome do narrador / do personagem, essa força contratual do relato, que aquela não é uma história inventada, que aquilo não habita o mundo do ficcional. É a inversão da suspensão de incredulidade: existe uma obrigação de credulidade.
Muitos desses livros têm enormes méritos. A não-ficção está cheia de títulos excelentes (como Julian Fuks, Didion, Rosa Montero, Baldwin, etc.). E muitos desses livros não têm mérito algum, a não ser o nome que carregam na capa, e as características que decorrem desse nome.
São os livros necessários, outra vez.
O que é necessário, no entanto, é a qualidade da história; ou a qualidade da forma como essa história é contada. Quando lemos ficção, pouco deve nos importar se as personagens agem como esperamos que elas deveriam agir, pouco deve nos importar se, na vida real, seria de outro jeito: o que está em jogo, o que é importante mesmo é que, dentro daquela construção ficcional, daquele ambiente, daquele contrato de surpreender e ser surpreendido, a narrativa seja verdadeira em si mesma - que a narrativa nos forneça elementos de emoção, de comoção, de significado.
Quando lemos não-ficção, pouco importa, de antemão, as características de quem escreve: importa que, conjugadas com as qualidades narrativas de forma e estilo, essas características alicercem uma obra que, fundada toda na experiência do outro, seja capaz de influir na nossa própria experiência.
Não é para isso que lemos histórias, no fim das contas? Para que os limites da nossa experiência sejam sempre expandidos, reconfigurados, redimensionados? Para que sejamos capazes de ver o outro, enxergar o outro, entender o outro?
E, na falta de histórias que nos coloquem nesse ponto de transformação, não é para isso que escrevemos histórias?