
Correr é um vocábulo de multiplicidade semântica, seja em sua forma verbal, seja substantivado. O que é correr? Andar rápido, mover-se rapidamente, acelerar. O que é correr? Percorrer uma distância alçando tempo de voo em que os dois pés ficam, momentaneamente, fora do chão. O que é correr? Percorrer uma distância sem alçar tempo de voo, mas da maneira mais rápida possível. O que é correr? É disputar, chegar ao ponto final, a linha de chegada antes do outro. Assim também é a corrida: corre-se consigo mesmo, corre-se por correr, corre-se para vencer. E são ainda outras coisas tantas: a vida está corrida, estou na correria, estou correndo aí.
Estando todos nós sujeitos às armadilhas da linguagem, a multiplicidade contagia o agente: o corredor também é, ele próprio, um sujeito múltiplo.
Assim ele é, O Corredor. Toda criança, quando possível, corre de um lado para o outro. Aprende-se a andar, é preciso fazer uso do poder e gastar a energia infantil. Ele também. Corria de um lado para o outro, corria rápido. Sempre gostou de correr. Não gostava de muitas outras coisas, não gosta de muitas outras pessoas, ficava sempre ressabiado e evitava interação. Mas correndo? Correndo ele ia bem. Na escola, vencia sempre as corridas contra os coleguinhas. Era o momento em que eles, enfim, calavam as bocas e paravam de atazanar. Correndo ele ia bem. Mas se um coleguinha ameaçasse correr mais rápido, já não ia bem — emburrava-se. Acelerava até as pernas doerem, até o pulmão queimar. Cairia duro no chão antes de perder a corrida. Mas menino, dizia a professora olhando para ele esbaforido, com o coração acelerado, não precisa de tudo isso, é só uma brincadeira.
Brincadeira?
Ficava louco.
Brincadeira?
Precisa, sim, respondia.
Claro que precisa. Como não precisa? Não deixaria que os outros lhe fizessem de besta, que lhe passassem para trás. Não, não, de jeito nenhum. Cairia duro e morto antes de ser ultrapassado.
Coisa de menino, a mãe dizia. O pai, severo, não escondia o orgulho: tá certo, rapaz, quem não vence, perde. Palavras que lhe castigavam e motivavam. Quem não vence, perde. Que lhe restava, senão vencer? Coisa de menino, a mãe dizia, na esperança de que esse ânimo feroz se aplacasse com o tempo — nem sempre é preciso estar correndo, é possível descansar vez ou outra. Nem sempre é uma corrida. Nem sempre correr é competir.
Mãe também erra, veja só. Não era só coisa de menino. Com a morte do pai, severo, a severidade a ele foi passada como herança imediata, pela saisine. Quem não vence, perde. Cresceu com essa ideia fixa, impregnada no DNA.
Já não havia mais brincadeira de correr, era um homem feito. Mas precisava correr, porque quem não vence, perde, e só pode vencer quem está correndo contra alguém.
Inscreveu-se em corridas de ruas e fez uma descoberta que para todos nós chega, basta que nos mantenhamos vivos tempo o suficiente: o mundo é muito maior do que o pátio da escola. Não importava quanta força fizesse, quanto levasse seu coração ao limite, não havia jeito de se manter a frente dos primeiros colocados. Perdeu uma, perdeu duas, perdeu três, perdeu até mesmo as contas.
Não é nada demais, a mãe dizia.
Nada demais?
Ficava louco.
Nada demais?
É tudo demais, sim, respondia.
Se queria se manter a frente dos primeiros colocados, seria preciso fazer o que os primeiros colocados faziam — e mais. Descobriu um grupo de corrida comandado por um treinador profissional. Entrou em contato. Deixou clara a sua pretensão: ser mais rápido que os outros, enfim, vencer. Está certo, então, respondeu o treinador. No grupo de corrida, sentiu-se bem outra vez. Era o mais rápido. Era o mais rápido entre os homens, um punhado, a maior parte mais velha do que ele, correndo para cuidar do coração, para se manter ativos. Era o mais rápido entre as mulheres, um punhado maior que o punhado de homens, a maior parte também mais velha do que ele. O que importa? Era o mais rápido.
Passou a treinar. Seguia os treinos, fazia força, era repreendido pelo treinador por correr mais rápido do que deveria nos intervalos leves. Não importava: sempre seria rápido, sempre faria força. Venceu a sua primeira corrida de rua. Era o dono do mundo: fosse o pátio da escola, fosse a rua, fosse o bairro, fosse a cidade. Era o dono daquele mundo. O Corredor.
Até que outro corredor chegou no grupo. Um corredor que não falava muito, que não disse ao treinador que queria ser o mais rápido, que queria vencer. Disse apenas que queria ser mais rápido do que era naquele momento, que queria melhorar o seu ritmo, sentir-se mais forte, ter um treino estruturado. Corria sozinho desde sempre, queria correr junto, aprender o que ainda não sabia. Corrida é assim, múltipla, infinita em si, cabe tudo. Claro, seja bem vindo, disse o treinador. Fez o teste de zonas de velocidade e o treinador se surpreendeu: é forte, disse para os outros. Bem forte. As zonas eram próximas do nosso Corredor, que quer vencer, sempre, porque do contrário, perde. Pouca coisa mais lentas. O treinador disse ao Corredor: vai ser bom vocês treinarem juntos. Não gostou da ideia, deixou claro na sua expressão. Não vou puxar ninguém, respondeu, e foi fazer o seu treino. O treinador alertou o novo corredor: aquele ali, disse apontando para o Corredor, corre forte, você pode acompanhar, mas ele tem umas questões. Questões? É. Quais questões? Você vai descobrir.
Quais questões? O novo corredor seguia a risca os treinos, respeitava os limites dos intervalos, confiava no trabalho do treinador. O Corredor nunca esperava por ele para começarem a treinar, saía antes ou depois, para que não corressem juntos. Questões. Ia entendendo, sem se preocupar. Tudo bem, cada um, cada um. Às vezes os intervalos se misturavam — o novo corredor estava em um intervalo forte, o Corredor em um intervalo de descanso, e o primeiro ultrapassava o segundo. Não, não, de jeito nenhum: pouco importava se estava no descanso, era só ver o novo corredor passando que o Corredor acelerava o passo, explodia sua frequência cardíaca, e retomava a frente. Sempre a frente. Sempre. Quem não vence, perde. O novo corredor percebeu. Achou graça. Provocou: deixava o Corredor ganhar a frente, diminuindo o passo, e logo em seguida dava um tiro. Repetia isso umas duas, três vezes, e depois voltava para o próprio treino, divertindo-se. Só um deles se divertia, é claro. O Corredor sentia ódio.
Essas questões.
Passou a acompanhar com muita atenção os treinos do novo corredor. Passou a seguir nas redes sociais, no aplicativo de corrida, tudo para saber o que ele estava fazendo, quão rápido estava correndo. Um contra o outro. Todas contra um. Era uma corrida e ele ia vencer.
Então se inscreveram para a mesma corrida de rua, mesma distância. O treinador sugeriu que corressem juntos, assim seriam mais fortes. Sugestão vazia, é claro. O Corredor disparou assim que o relógio começou a rodar. O novo corredor seguiu a distância, mantendo o seu próprio ritmo. O Corredor olhava constantemente por cima dos ombros, mantendo-se a frente. O novo corredor controlava o passo, hidratave-se, confiava no treinamento. O Corredor queria vencer. Logo ficaram os dois sozinhos na frente da corrida. Um contra um. Todos contra um. Faltando um quilômetro, o novo corredor acelerou o passo. Por um instante de distração, o Corredor não percebeu a aproximação do adversário, que passou pelo seu lado. Imediatamente apertou o ritmo, percebendo que o novo corredor estava forte. Não teve a facilidade esperada para retomar a frente. Continuou fazendo força, continuou extraindo tudo o que tinha das pernas. Emparelharam os ombros e assim foram pelos metros restantes, ambos em silêncio, ambos correndo forte, ambos com a respiração controladamente ofegante. Já se via a linha de chegada. O narrador enunciava: aí vem os dois primeiros colocados, vamos ter sprint, olha a emoção. Cento e quinenta metros. Cem metros. Alguns segundos até o fim, os dois ainda ombro a ombro. O Corredor sentiu a perna doer, a panturrilha queria travar. Tentou a aceleração final para o sprint e não teve forças para ir mais rápido. Cinquenta metros. Quarenta metros. Trinta metros. Vinte metros.
Brincadeira?
Nada demais?
Que questões?
Sentiu a derrota se aproximando. Bastava que o novo corredor, seu inimigo, seu adversário forçasse um pouco mais o ritmo e estaria feito, não teria como acompanhar. A panturrilha estava inteira travada, cada passo era uma tortura. Quem não vence, perde.
Dez metros.
E o novo corredor sumiu da sua visão periférica. Não tomou a sua frente. O Corredor passou em primeiro pela linha de chegada. Dois segundos depois, o novo corredor passou. Venceu. Ele venceu. Como?
Caminhando após o final da prova, tentando se recuperar, sentiu os tapinhas nas suas costas. Parabéns pela prova, disse o novo corredor, sorrindo, e seguiu andando.
Venceu. Ele venceu. Por que, então, não parecia ter vencido?
Correr é um vocábulo de multiplicidade semântica. Nós somos, também.