O lugar-evento que é o açougue na cidade do interior
Aproveitando o lançamento de Don't Look Up na (no?) Netflix (e a quantidade insuportável de hot take burro envolvendo o filme), vamos fazer uma analogia simplória:
Avisam a população de um país, com meses de antecedência, que ocorrerá um dilúvio de proporções bíblicas e a nação inteira ficará submersa. Todos precisarão de botes para sobreviver. Pensando nisso, a produção de botes é incrementada e boa parte da população corre para comprar o seu.
Veja bem: boa parte.
Outra parte, não a maioria, parte significativa, vai adiando. Sabe que precisará de um bote, o dilúvio é inevitável, a água vai preencher todos os espaços urbanos. Mesmo assim, vai adiando. Adiando. Adiando.
Até que chega no dia imediatamente anterior ao dilúvio. É nesse dia que toda a parte que não comprou bote corre para a loja de botes, desesperados pelo seu pedaço de borracha.
O resultado não é bom.
Essa é a sensação de no dia 31 de dezembro ir até o mercado comprar Chester. Se nada muito grave acontecer, desde o dia primeiro de janeiro nós já sabemos quando será o reveillon. Mesmo assim, vamos adiando. Adiando. Adiando.
Até que no dia 31 vamos comprar o maldito pássaro.
Isso se nós não formos diligentes.
Por que eu estou dizendo isso?
Porque a minha irmã, que decidiu comemorar o ano novo na casa dela, pediu que comprássemos Chester hoje. Dia 31 de dezembro. Às 14 horas.
O resultado não é bom.
Essa história não é a história principal. Só quis compartilhar meu sentimento de fim do mundo ao ir em um mercado lotado, num calor desgraçado, numa cidade do interior em que todo mundo decidiu comprar seus mantimentos para o reveillon no último momento possível.
A história principal também envolve um pouco essa situação, mas é diferente.
A história principal é sobre açougues. Açougues em cidades do interior.
Eu nasci em Boituva, vivi alguns anos no Rio de Janeiro, e depois voltei para Boituva, onde passei o fim da minha infância e toda a minha adolescência. Boituva não tem nem 100 mil habitantes. Aos 17 anos, em 2012, eu saí da cidade para morar em outro lugar, e desde então eu não vivo em Boituva, venho para cá apenas como visita.
Boituva deixou de ser o meu lar (físico e afetivo) há muito tempo, por muitos motivos, que agora não vem ao caso.
O que acontece em Boituva é um fenômeno engraçado, que eu suspeito ser replicado em outras cidades do interior: os açougues da cidade todos têm nome de família. Açougue Irmãos Christo, Açougue Melaré, Açougue Moretti, Açougue Denardi. É tudo um grande jogo de nomes, de relações, de primos, irmãos, parentes.
A escolha do açougue preferido passa por diversos pontos, envolvendo, claro, o preço, a qualidade da carne, o corte, e também os laços de cada família com o cliente. Quase todo mundo se conhece. Não só o açougueiro conhece o cliente, mas o cliente conhece o pai do açougueiro, o irmão, a esposa, os filhos. A coisa toda.
Tem o açougue que é mais barato, o que tem mais variedade, o que fica aberto até tarde, o que é muito bom, mas os açougueiros são rudes, o que não é muito bom, mas os açougueiros são gentis. É toda uma dinâmica própria.
E por qual razão eu estou falando disso?
Eu fui pegar um frango assado que encomendamos para o almoço, e do lado do lugar que vende o frango assado havia uma fila enorme de gente esperando na rua. Era a fila de um desses açougues da cidade. Quase todos os homens estavam de bermuda e chinelo, as mulheres de shorts e chinelo. Quase todos se conheciam entre si. Batiam papo. Esperavam a vez para fazer o seu pedido. Uma ou outra senhorinha mais bem arrumada aparecia, de óculos escuros, e tinha preferência, passava na frente, recebia um aceno do açougueiro que já puxava um saquinho com o pedido separado. Esse desenvolvimento social parece muito próprio de uma cidade pequena, de um lugar menor, interiorano, em que as pessoas se conhecem mais profundamente. Em que os nomes importam muito - "você é gente de quem?". É praticamente impossível você ir comprar um corte de carne sem encontrar um conhecido - seu, dos seus parentes, da sua família.
Dessa forma, a decisão de comprar carne de última hora para o ano novo vira ela própria um evento, um encontro de compadres e comadres.
E eu, eu só observo. Há quase 10 anos saí de Boituva. Não tenho dúvida de que na fila do frango ou do açougue tinha gente que conhecia minha mãe, que se eu falasse meu nome iria me reconhecer de algum lugar. Nós estamos todos assim, entrelaçados. É bom se sentir parte dessa grande reunião, dessa grande relação familiar. Mas também pode ser sufocante. Você é você e todo mundo que veio antes de você. Como ninguém me reconhece sem que eu me apresente, eu não sou ninguém. Um estranho. Outsider. Na fila do açougue eu sou só o próximo da fila, sem laços afetivos profundos com o açougueiro, com a sua família, com a sua história.
Estou um tanto quanto livre. E também um tanto quanto sozinho.
Boituva é uma cidade estranha.
No fim das contas, todo mundo é atendido, a fila do açougue, do frango, do caixa do mercado é zerada e à meia-noite os infernais fogos de artifício vão subir aos céus, estourando em um show de luzes e som, irritando meu cachorro, e as famílias se abraçarão, comerão carne, pão, alface, o que quer que seja, desejando que o ano que vem seja, de alguma forma, qualquer forma, melhor do que esse ano.
Um desejo sincero, que pode ou não se desfazer ao longo do ano seguinte, em que tudo começa outra vez, e em 31 de dezembro de 2022 haverá de novo fila para a carne, para o Chester, e novas promessas serão feitas:
essa é a última vez que eu deixo tudo para última hora!
A promessa impossível.
Feliz 2022, queridas e queridos.
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Até a próxima! - gsc