O papa também morre
Um conto de Um mundo em que existem baleias (Editora Patuá, 2021)
Desde o começo dos tempos as pessoas têm nascido e as pessoas têm morrido. Nada disso diz respeito a ele, cujo tempo é só o agora.
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No dia de domingo as horas não passavam no relógio, mas nos programas de tevê. Ele não olhava o relógio, apesar de ter aprendido a ver as horas no analógico. Ficava vendo tevê durante todo o dia e a marca do tempo estava nos blocos e nos intervalos e nos programas que se sucediam. Era um dia de domingo.
Da cozinha vinha o cheiro da comida que a mãe preparava e junto com a programação dominical o corpo também indicava o passar das horas com a barriga dando os primeiros rosnados informando que a fome chegava. Não deu atenção para a fome, pensava em outra coisa.
O papa está muito debilitado, dizia a mulher da tevê que aparecia em frente a uma multidão de pessoas. Os fiéis se aglomeram aqui no vaticano em oração pela saúde de sua santidade. Sua barriga deu outro sinal, que não o da fome. Esfriou de vez e os pelos do braço arrepiaram. O papa estava doente.
Não gostava do papa, nem desgostava do papa. O papa sempre esteve lá, como aquele móvel de tevê, como o piso vermelho da cozinha, com a avó sentada na poltrona com a agulha na mão e os óculos na ponta do nariz. Se o papa sempre esteve lá, não poderia deixar de estar. Ao ouvir sobre sua saúde, sentiu um nervoso enorme, porque conhecia a morte assim de ouvir. Se o papa morresse, o que mais não poderia acontecer?
Sobre deus ele não queria saber. Na verdade, queria poder não saber. Tinha medo de deus. A vó rezava antes de dormir, a mãe fazia o sinal da cruz ao passar pela igreja e pelo cemitério. Ele imitava. Imitava pelo medo de deus. Foi aos sábados na catequese e lá não aprendeu nada, só aumentou seu medo. Deus parecia e não parecia. Não sabia bem. Ouvia sobre deus sentindo medo e desconfiança. Sentia a mesma coisa ao ver a irmã e suas amigas fazendo a brincadeira do compasso. Era claro que elas empurravam com a mão o compasso para a letra que queriam, mas todas agiam como se fosse algo do lado-de-lá, e ele temia. Sabia para si que era a mão delas, as mãos de menina delas que empurravam o compasso, mas ao mesmo tempo todas diziam o contrário. Com deus era assim. Não acreditava no que ouvia, mas todos diziam que era verdade. Tinha muito medo de deus. Rezava antes de dormir por medo. Fazia o sinal da cruz por medo, para não deixar deus irritado. Queria que deus gostasse dele. Melhor gostar do que não gostar. Um dia perguntou para a mãe Do que deus é feito?, e ela disse Como assim, menino?, e ele disse Não sei. Ela riu e não respondeu. Ele continuou sem saber e querendo saber. Do que era feito deus? De todas as coisas, a senhora da catequese disse. Todas as coisas?, Sim, de todas as coisas, deus está em tudo e é tudo. Olhou com extrema atenção para o lenço que ela tinha na cabeça e pensou por que deus seria e estaria em um lenço como aquele. Tinha medo de deus. Não entendia quem era deus, nem do que era feito. Continuava rezando antes de dormir. Quando fazia algo que poderia incomodar a deus, tinha medo. Fazia o sinal da cruz. Deus também era como o móvel da tevê, a vó na poltrona. Sempre esteve lá. Só que ele nunca viu. Não sentiu o cheiro. Não tocou com os dedos. Não beijou com a boca. Só tinha medo. Deus era a face do medo. Na escola a professora pediu para que eles escrevessem sobre algo que dava neles muito medo, porque logo era o dia das bruxas. Começou a ler os exercícios. Espíritos, zumbis, mula-sem-cabeça, aqui todos riram, hahaha, também veio disco voador, andar de avião, pular de paraquedas, alguém escreveu que não tinha medo de nada, a professora disse que era impossível, que todos têm medo, alguém ergueu a mão e perguntou Até o super-homem?, e ela respondeu Até o super-homem, continuou lendo até chegar na resposta dele, e quando leu, primeiro sem falar nada, ergueu os olhos para o encarar e, para todo mundo ouvir, falou Alguém disse que tem medo de deus. A sala toda riu e ela pediu para que ele aguardasse antes de sair para o recreio. Deu uma bronca, dizendo que aquilo não tinha graça. Ele disse que não fez por mal. Ela disse que não podia fazer aquilo. Ele pediu desculpas. Ela disse que com o nome de deus não se brinca. Ele queria chorar. Sentia ainda mais medo de deus agora. Mais para frente, em um ponto futuro desse momento da história, ele teria medo outra vez, mas não de deus, e sim de ficar sem deus por assumir que talvez o seu medo de infância fosse de algo que não existia. Como a criatura do lado-de-lá que movia o compasso.
Do papa não tinha medo. Achava graça da roupa branca e do rosto velhinho. Da mão que tremia. Para ele o papa era isso, o rosto velhinho, a roupa branca e a mão que treme. O papa tem que tremer?, perguntou para a mãe, e ela disse Não, ele tem uma doença, e ele perguntou Mas só quando vira papa?, e ela disse Só quando vira papa o quê?, e ele respondeu Só quando vira papa tem essa doença. No fim gostava de ver o papa e para ele nada no papa tinha a ver com deus. Era como o móvel da tevê, a vó na poltrona.
Agora o papa estava muito debilitado e ele quis chorar. Não chorou. Ficou ouvindo atento os repórteres falando que a doença havia progredido, que ele estava internado e as expectativas não eram das melhores. Ele é o papa, pensou. Não pensou nada além disso, só Ele é o papa. O pensamento que carrega todos os outros não pensados. Ele é o papa. A voz na sua cabeça dizendo isso o tranquilizou.
Agora a voz da mãe interrompeu esse fluxo. O quê?, ele perguntou, porque não ouviu direito. Preciso que você vá no bar pra mim, comprar conhaque. Ela estava fazendo strogonoff e precisava do conhaque para a carne. Ele uma vez perguntou se colocar conhaque na carne não deixaria todo mundo bêbado. Ela explicou que não, que o fogo cortava o efeito. Ele não entendeu a razão, mas aceitou o que ela disse. Como em muitas outras coisas, ele aceitava por ser dito por quem era dito. Deus no lenço da senhora da catequese. A doença que fazia a mão tremer. O conhaque no strogonoff. Mas agora?, ele perguntou. Agora, filho. Agora não, mãe, Agora, filho, e sem discussão. Saiu contrariado. Não queria deixar o papa ali, sozinho. Não queria deixar o mundo desprotegido. Pegou a nota da mão da mãe e saiu pisando firme, para que ela soubesse que ele estava contrariado.
Na rua pensou de novo no papa. Na mão que tremia. Quando ele voltava com o copo de conhaque, tinha que tomar muito cuidado para não vazar. Às vezes caíam umas gotinhas na sua mão e ele se entristecia. Era uma tarefa difícil. Tudo estava calmo e tranquilo na rua naquele domingo. Não queria mais ter medo de nada. Queria crescer para poder dizer que tinha medo de deus sem que a professora ficasse brava, porque gente grande diz e é ouvida. Queria crescer para não ter mais medo de deus. Chegando no bar seu medo foi outro, o medo de sempre quando ia comprar conhaque. Que o dono do bar não acreditasse que o conhaque era para a mãe dele, que fazia strogonoff, mas sim para ele. Uma criança querendo conhaque. Tinha um medo enorme disso, que o dono do bar o acusasse de beber. O dono do bar conhecia sua mãe e o conhecia e ele já tinha feito aquilo diversas vezes. O medo, contudo, nunca ia embora. Foi preparando a fala e quando chegou no balcão disse de uma só vez Oi eu quero uma dose de conhaque por favor é pra minha mãe ela tá fazendo strogonoff. O dono do bar se virou, virou a garrafa no copo plástico, pegou a nota da mão dele e entregou a bebida. Antes que ele se virasse, o dono do bar disse Não vai beber, ein, e ele ficou estático, de olhos arregalados. Tentava falar sem conseguir. Tentava explicar sem conseguir. O dono do bar emendou Tô brincando, fio, e ele deu as costas e foi embora, aliando o passo rápido da pressa com o equilíbrio da bebida. Esqueceu do papa por um minuto.
Quando entrou em casa, a mãe não estava na cozinha. Deixou o copo em cima da mesa e foi para a sala, onde ela estava em pé, olhando para a tevê. Que foi, mãe?, e ela, sem tirar os olhos da tela, respondeu O papa morreu.
Demorou para ela entender a crise que acometeu o menino. Na verdade ela não entendeu, entender assim na compreensão íntima das razões. Ela captou a superfície. O que ele sentia, ela nem poderia ser capaz de entender, ele não era capaz de entender, por ser esse sentimento sentido só na incoerência sem palavras, feito mesmo é na confusão e expressado à margem da lógica. Ele era capaz de sentir, por ser nele que os sentimentos se manifestavam, e ela, por ser outra, ainda que tentasse, ainda que se esforçasse no papel de mãe, ainda que quisesse que o seu coração batesse no peito do filho, era capaz só de raspar a superfície dessa profundidade sem fim.
Ele havia saído e o papa havia morrido. Ele havia se descuidado do mundo. Deus estava atento, sendo tudo e estando em todas as coisas. O papa sempre esteve lá. Agora não mais, porque o papa estava morto. O papa está lá, longe, e ele aqui, na sua casa, na sua sala. Ele se descuidou e o papa morreu. Tudo estava em perigo a partir de então. Quando ele saiu pela porta para buscar o conhaque, a vida ficou descoberta. Nos passos que ele deu até o bar o tempo não cessou e o papa morreu sem a sua atenção. O tempo não cessou. Desde o começo dos tempos as pessoas têm nascido e as pessoas têm morrido. O tempo dele é o agora. O tempo de todos é o agora, pensou. Todos estão vivendo agora, menos o papa, que morreu. Quando saiu o móvel da tevê continuava lá, o piso da cozinha continuava vermelho, a vó na poltrona com as agulhas na mão. O tempo de todos é o agora, menos o papa, que morreu.
Foi para o quarto e se deitou. O strogonoff tinha um gosto esquisito. Sentia medo e pena de deus, que deveria estar atento o tempo todo, por ser tudo e estar em tudo. Fechou os olhos e naquela noite não sonhou.
No outro dia pela manhã, depois de comer o café da manhã preparado pela mãe, sentiu um arrepio antes de sair pelo portão. A súbita compreensão de não estar sozinho.
Um mundo em que existem baleias, publicado pela Editora Patuá em 2021.