O último dia de um ano que mal começou
31 de dezembro de 2020, a lista inscrita no diário
“Nossos cadernos”, escreve Joan Didion em On keeping a notebook (em Rastejando até Belém, tradução de Maria Cecilia Brandi para a edição brasileira), “nos revelam, por mais respeitosos que sejam os registros do que vemos ao nosso redor, que o denominador comum de tudo o que vemos é sempre, de forma transparente e desavergonhada, o implacável ‘eu’”.
Tenho há anos mantido diversos caderninhos, cadernos de tamanho normal e cadernos de tamanho grande a distância da mão e raramente saio de casa sem algum tipo de bloco de notas. A doença do escritor é essa: nunca sossegamos, porque não se sabe quando a próxima história vai começar.
Em muitos deles — na maioria —, as anotações são relatos esparsos do meu cotidiano. Relatos desinteressantes, mas que eu não deixo de registrar desde que me senti atravessado pela carta de 17 de fevereiro de 1903 que Rilke escreveu para Franz Kappus e que faz parte do belo e curto livro Cartas a um jovem poeta:
Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso. Então se aproxime da natureza. Procure, como o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite a princípio aquelas formas que são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes. Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntimas imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros.
E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos. Também não tentará despertar o interesse de revistas por tais trabalhos, pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e uma voz de sua vida.
Encontrei um desses cadernos há pouco tempo e, folheando suas anotações, me deparei com um registro de 31 de dezembro de 2020, escrito em Araras, no ano em que a pandemia começou.
O último dia de um ano que mal começou.
O último dia de um ano que, por mal ter começado, vai resistir em acabar.
Assim se inicia o registro. E em seguida:
Do que eu sinto falta:
da minha mãe (como sempre)
de jogar basquete toda semana
de tomar café depois do almoço, no vintage
de ir na livraria do shopping
da minha irmã e das minhas sobrinhas
do meu cachorro
de ir para a fflch
de ter planos mais sólidos
de romper os meus planos por vontade própria
de tomar café com a marina na benjamin
de ter expectativas positivas
de ir para paraty na flip
do elder e da lua
de jantar no centro histórico de paraty depois de passar o dia andando, ouvindo, comprando livros, tomando café (de graça) na casa folha
de escrever sobre o mundo
da minha avó
de ir no joão rock com a marina
de tomar café da manhã de hotel com a marina
de acordar cedo em paraty para comer bolo do elder, com geléia
da comer a comida da minha mãe (nada tem a ver com 2020, mas eu sinto muita falta, então está na lista)
de ler no sesc 24 de maio
de nadar no sesc 24 de maio
de dar risada no trabalho
do bola ao cesto
Tudo o que vemos tem como denominador comum o implacável eu.
Do que eu sinto falta. Da vida que eu ansiava por retomar e da vida que eu jamais retomaria.
O ano é 2023 e eu jogo basquete toda semana e tomo café da manhã com a Marina e rompo com meus próprios planos e sinto falta da minha mãe e amanhã eu embarcarei para Paraty mais uma vez, mas essa é outra história, ainda que seja, de alguma forma, sempre a mesma.
Uma história sobre a saudade.