Obituários na era digital e um feliz natal para você!
O natal é a minha época festiva preferida do ano. Eu gosto das luzes de natal, eu gosto dos enfeites de natal, eu gosto das comidas de natal, eu gosto das músicas de natal, eu gosto das propagandas bregas de natal. O natal é a minha concessão ao capitalismo como produto. Surge em mim um bem estar quando eu começo ver pipocar referências ao natal no começo de dezembro, a netflix colocando um monte de filme reciclado na lista de indicações, as árvores das cidades serem envolvidas por pisca-pisca. Eu fico contente.
Eu adoro o natal.
Quando criança, geralmente os presentes ficavam na casa da minha vó. Ela tinha (tem ainda, eu acho, mas hoje ela já não monta mais) uma árvore de tamanho médio que ficava dentro de uma caixa junto com o pisca-pisca, com um Papai Noel de pelúcia e mais dois ou três enfeites. Essa caixa ficava na parte de cima de um armário antigo de um quarto de hóspedes (que um dia foi o quarto da minha mãe, da minha tia, do meu tio). Chegava dezembro e a minha vó pegava essa caixa (quando ela ainda conseguia subir numa cadeira, numa escada, pegar a caixa, afins) e montava a árvore na sala, sempre no mesmo lugar. Colocávamos lá os presentes e esperávamos o dia 25. Eu quase sempre dormia na casa dela na véspera da véspera do natal, porque eu estava ansioso pelos presentes, ansioso pela chegada do dia 24, que nada mais era do que um grande prenúncio do dia 25. Ficava lá, ansioso na cama, esperando o sono me salvar e me transportar para o dia seguinte.
Hoje essa casa da minha vó foi alugada e é metade salão de beleza, metade uma loja da Vivo, e metade casa. Minha vó mora em outro lugar, uma casinha menor. Ela já não anda sem ajuda. Não é capaz de montar a árvore. Mas nas minhas memórias ela sempre será a responsável por garantir o sucesso do natal.
E enquanto eu escrevo isso é dia 25 de dezembro de 2021. Dia de natal. Não sei quando você vai ler, mas fica aqui o meu desejo de feliz natal de toda forma.
Há dois dias, rolando o feed do Twitter, uma manchete apareceu entre tantas outras informações, só um punhado de caracteres trazendo uma enorme notícia:
The New York Times@nytimes Breaking News: Joan Didion has died at age 87. Her sharp dispatches on California and tough, terse novels forged a distinct new voice in American writing.
13:58 do dia 23 de dezembro de 2021 o NYTimes noticiou a morte de Joan Didion.
Dois dias antes do natal, oito dias antes do final de 2022, mais uma notícia de morte. Mais uma informação de luto coletivo. Mais uma voz que se perde. Mais uma figura pop, mais uma figura literária, mais alguém que vivia por meio das palavras e agora terá, quer queira quer não, se contentar com as inevitavelmente insuficientes palavras que já escreveu.
O que Didion poderia ter dito foi dito.
Minha reação foi: "puta que pariu".
Se você lê o que eu escrevo, se me conhece de alguma forma, se me acompanha em alguma rede social, você sabe a enorme admiração que eu tenho pela Didion. Desde que eu li Didion pela primeira vez eu fui tocado, transformado de maneira profunda pela sua força narrativa, pelo seu arranjo com as palavras, pela sua paradoxal síntese que abarca enormes assuntos. Desde que eu li Didion pela primeira vez eu pensei: eu nunca mais vou escrever, porque eu não sou capaz de fazer isso; e também: eu preciso escrever. É curioso se sentir compreendido por alguém que não te conhece e nunca vai te conhecer. É curioso ler nas palavras dos outros a materialização dos seus próprios pensamentos, aqueles que você nunca conseguiu dar forma. É curioso ler alguém e pensar: bom, eu não estou sozinho nesse mundo a partir de agora.
Era assim com Didion. Ainda é. Um estranhamento absoluto diante da desordem do mundo, um desejo poderoso de organizar o caos, e uma dolorosa compreensão de que não é possível explicar tudo.
Fiquei tão marcado que desde que a li pela primeira vez eu pensei: quero pesquisar sobre isso. Foi quando, em 2016, talvez? Cinco anos depois eu me inscrevi no processo seletivo da pós-graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP com um projeto sobre a Didion, estudei, fiz a prova, cumpri as etapas, e consegui convencer pelo menos uma pessoa de que há algo a ser discutido na obra dela, há algo a ser pensado, algo que ainda não foi feito por aqui no Brasil.
Menos de um mês depois do resultado final do processo seletivo do mestrado sair, a notícia da morte de Joan Didion. É engraçado: ela não escrevia mais, quer dizer, é claro que escrevia, mas já não publicava, e nós nunca nos encontraríamos (seria altamente improvável, pelo menos), mas a notícia da sua morte parece mudar as coisas. Parece mudar a realidade. Parece dar ao meu projeto de pesquisa, ao meu mestrado uma nova dimensão. Uma obrigação de respeito. Uma obrigação de dedicação.
Alguém que nos entendia partiu. Agora precisamos nos fazer entender, seja como for.
Outra sensação esquisita é a de pensar como a internet é um grande obituário. É só rolar o feed e todo dia alguém vai ter morrido. Alguma notícia de morte, assim, instantânea. Estamos cercados pela morte. Estamos cercados pela ideia da morte. Toda história é, de alguma maneira, uma história sobre a morte. Mesmo o natal: na tradição cristã, é o nascimento de Cristo, mas a sua marca está indiscutivelmente ligada à morte de Cristo. É a morte de Cristo que define seu nascimento como uma data especial. É a sua morte e a sua ressurreição, a absolvição dos pecados da humanidade. A morte é uma constante. Nós sabemos que ela existe, é inegável. Mas nós a encaramos de maneira abstrata, um mecanismo para vivermos mais tranquilos. Quando acontece, quando a morte deixa de ser abstrata para ser tangível, uma ausência pesada em nossas vidas (aqueles que sobrevivem), enfrentamos o luto, a dor, a tristeza. Diante desse cenário, os momentos em vida viram celebração. Tudo está por um fio, a um tuíte do fim: BREAKING NEWS, fulano de tal morreu.
Mas essa não é uma newsletter triste.
É só uma constatação.
Joan Didion morreu dois dias antes do natal. A morte é inevitável. Estar vivo é uma celebração.
Como celebração pela vida de Didion, decidi traduzir o ensaio On Self-Respect, publicado originalmente na Vogue e republicado no livro Rastejando até Belém. É uma forma de manter o contato, de me enfiar no meio de suas palavras e extrair algo novo, algo meu.
Você pode ler o ensaio aqui.
Vou terminar com o último parágrafo desse ensaio: o poder do autorrespeito. Feliz natal!
"É o fenômeno às vezes chamado de autoalienação. Nos seus estágios mais avançados, nós deixamos de atender o telefone, porque alguém pode querer alguma coisa de nós; a ideia de que nós podemos dizer não sem nos afogarmos em autorreprovação é desconhecida nesse jogo. Todo encontro exige demais, destrói os nervos, suga nossa disposição, e o espectro de algo tão pequeno quanto uma carta não respondida suscita uma culpa tão desproporcional que a nossa sanidade passa a ser objeto de especulação entre os nossos conhecidos. Conceder às cartas não respondidas o peso que elas têm, libertar-nos da expectativa dos outros, devolver-nos de volta para nós mesmos — aí reside o enorme, singular poder do autorrespeito. Sem ele, eventualmente se descobre o giro final do parafuso: fugir para se encontrar, e não encontrar ninguém em casa."
Joan Didion (1934 - 2021)
- gsc