Eu não pretendia escrever esse texto. Mas quando eventos extraordinários acontecem, textos extraordinários precisam ser escritos.
E a final da Copa do Mundo que aconteceu hoje, 18.12.2022, foi um evento extraordinário. Extraordinário, enquanto fora do comum; inesperado, como esse texto. Extraordinário, enquanto inigualável; mágico; fora do real, como só o esporte pode fazer.
Tenho tentado já há algum tempo fixar em palavras as causas e os efeitos da prática esportiva na minha vida e na vida humana, em geral. Falo sempre da minha relação com o basquete, por ser o esporte que eu pratico, mas o meu fascínio esportivo não se limita a ele.
Na verdade, quando criança eu, como boa parte das crianças brasileiras, cultivei o sonho de jogar futebol profissionalmente. Na infância eu treinei como goleiro durante alguns anos e com a popularização da internet eu devo ter consumido milhares de vídeos de jogadores que eu admirava. Goleiros como Dida, Schmeichel, Buffon. Jogadores de linha como Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Sócrates, Lionel Messi.
Havia nesses atletas algo de extra-vida, algo maior do que a própria existência. O esporte possui características que o tornam poderoso e especial: a possibilidade de gente humana fazer coisas que superam o compreensível. A possibilidade de, por meio do absoluto domínio do próprio corpo, atingir o inimaginável em termos de performance. Não tem nada a ver com saúde — para mim e para você, esporte pode ser saúde, mas no alto nível é o exato oposto; é o sacrifício da saúde pelo resultado.
Escritores da maior qualidade já escreveram milhares de palavras sobre o tema.
David Foster Wallace escreveu um dos melhores ensaios esportivos de que eu tenho conhecimento: Roger Federer como uma experiência religiosa.
Karl Ove Knausgaard escreveu sobre Di Maria, jogador argentino autor de um dos gols do jogo de hoje.
O uruguaio Eduardo Galeano fez do futebol o material da sua melhor produção literária.
E o futebol, sendo um esporte, carrega todas as características atrativas da prática esportiva. Mas o futebol vai algo além: o futebol é uma força social incontrolável.
No Brasil, o futebol é, talvez, o primeiro exemplo em que pensamos quando falamos de transformação socioeconômica. O futebol representa, para muitas crianças miseráveis, a possibilidade mágica de ascensão.
Num país desigual, violento, o futebol funciona como a corrente que une as pessoas. Pais e filhos se mantém conectados por causa do futebol. Famílias se formam e se separam por causa do futebol. Amigos se descobrem por causa do futebol.
E sendo o futebol uma força social, ele traz consigo também as características mais detestáveis de nossa sociedade, não como exclusividade ou autocriação, mas como representação. Não por menos o futebol é, em muitas vezes, propiciador de um ambiente violento, preconceituoso, misógino.
Reconhecer tais características não importa em ignorar a beleza que, dentro dessas contradições, emana do — e constitui o — futebol.
Deixe-me ilustrar o que eu quero dizer.
Pouco depois da final do jogo da final da Copa do Mundo entre Argentina e França, saí de casa no centro de São Paulo para tomar um café e, passando pela Ladeira da Memória no Anhangabaú, isso foi o que eu encontrei:
Um grupo de homens adultos, ainda em uniforme de trabalho, jogava bola com duas crianças — um menino e uma menina —, usando a ladeira como campo. Todos sorriam e se divertiam, mas tratavam o jogo como algo sério, importante. Não só as duas crianças conferiam uma relevância aparentemente sem sentido na brincadeira; os adultos estavam concentrados em cada um dos movimentos da bola e dos seus próprios corpos.
É uma cena comum pelo Brasil — as ruas virarem campos improvisados, os chinelos fazerem às vezes das traves. É uma cena comum pela América Latina — pelo Chile, pelo Uruguai, pela Venezuela, pela Argentina.
O futebol, que é, ao mesmo tempo, apenas um esporte cujo objetivo é fazer a bola entrar no gol adversário e, também, muito mais do que isso, é um espaço de manifestação cultural da paixão, do amor, da alegria.
O jogo de futebol propicia não apenas aos jogadores profissionais, que fazem isso como forma de ganhar a própria vida, mas a todos que o apreciam a sensação de integrar algo maior. De pertencer a uma dimensão acima da vida cotidiana.
Quando o juiz apita o início do jogo, o resto ganha caráter secundário.
Só o que importa é o jogo que se desdobra dentro do campo. E hoje, 18.12.2022, o maior jogo da história aconteceu.
Não falarei sobre o que significa uma Copa do Mundo. A essa altura, todos já sabem.
Na final se encontraram Argentina e França, o que todos também já sabem.
O que aconteceu nessa final, no entanto, nós testemunhamos, mas foram os deuses do futebol que decidiram.
Um parêntese. Não acredito em Deus, mas acredito nos deuses dos esportes. Todos os fanáticos por esportes competitivos sabem o que isso quer dizer: acreditar num conjunto de forças que rege o jogo para além dos limites físicos; um conjunto de regras não-escritas, de tradições, de superstições que definem os rumos da história. Um dos treinadores de basquete que eu tive nos dizia que, para o arremesso ser bem-sucedido, era fundamental que a bola passasse pelas mãos de todo o time pela troca de passes antes da finalização, carregando, assim, a bola com uma energia enviada diretamente pelos deuses do basquete.
Não que eu acredite em energia ou qualquer coisa assim, mas se você já assistiu a um jogo de basquete na vida, você sabe que depois de uma intensa troca de passes no ataque, o percentual de acerto dos arremessos é muito maior.
Na dúvida, vale o ditado: no creo en brujas, pero que las hay, las hay.
Voltando à final: a Argentina fez um gol de pênalti logo no começo da partida com Messi, talvez o maior jogador de todos os tempos, mas que carrega consigo a pecha de não ser capaz de ganhar pela seleção nacional.
Depois, um segundo gol maravilhoso, daqueles de manual, num contra-ataque em que todos os movimentos pareciam extraídos de uma dança regida pelo jazz — harmonia no improviso. Messi deu um toque de gênio no meio-campo, Mac Allister encontrou Dí Maria entrando na área no lado oposto do campo e colocou a bola nos pés do jogador favorito do Knausgaard para deixar a partida 2x0.
Parecia tudo perfeito para o tricampeonato argentino. Só que os deuses do futebol são implacáveis. Há uma regra universal: não se grita gol antes. E não se comemora antes de acabar.
Afinal, só acaba quando termina.
Com pouco mais de 15 minutos para o fim da partida, a torcida argentina começou a gritar Olé! em cada passe feito pela seleção latino-americana. O grito de Olé! é uma provocação contra um time que já se encontra derrotado. Mas foi cedo demais, e os deuses do futebol ouviram.
10 segundos depois, pênalti para a França.
Mbappé na bola. 2x1.
O jogo recomeçou e a torcida argentina se calou.
Poquíssimos lances depois, Messi perde a bola no meio-campo, a França organiza o ataque, Mbappé recebe uma bola alta na entrada da área e bate forte. 2x2.
O jogo vai para a prorrogação; dois tempos de 15 minutos.
A confiança argentina desapareceu e o jogo estava nervoso. Os deuses do futebol, regendo o espetáculo, tinham mais cartas na manga.
No segundo tempo da prorrogação, a Argentina encontra espaços na defesa francesa e a bola sobra, depois do rebote do goleiro Lloris, nos pés do único jogador que poderia estar ali: Lionel Messi. E ele faz o terceiro gol.
3x2 Argentina, apoteótico, histórico, lindo.
Mas não havia terminado.
O lateral argentino Montiel havia entrado no decorrer do jogo e durante a Copa ele praticamente não jogou. Era um reserva quase esquecido. Faltando 4 minutos para a glória argentina, a França arriscou de fora da área e Montiel, com os braços abertos, impediu a passagem da bola com a mão. Pênalti. Infantil. Evitável. Pênalti.
Os deuses do futebol se regozijavam.
Mbappé. 22 anos. Gol. 3x3.
E assim o maior espetáculo já produzido em um campo de futebol durante a Copa do Mundo se dirigiu para a decisão do imponderável: a disputa por pênaltis.
O atleta profissional dedica a sua vida inteira a melhorar o seu ofício. A superar os adversários. A diminuir os erros e aumentar os acertos. No mais alto nível, a diferença é minúscula. É sempre na ponta dos dedos, nos milímetros que a história se decide. O atleta profissional dedica a sua vida inteira para o momento decisivo, em que o talento talvez prevaleça, mas nem sempre prevalece.
O atleta profissional dedica a sua vida inteira para que quando os deuses lancem a moeda, a sorte esteja do seu lado.
Os deuses do futebol lançaram a moeda.
Montiel, o responsável pelo gol de empate da França, foi para a bola na cobrança decisiva.
O resultado nós conhecemos.