Preâmbulo - Eu posso estar errado - Edição Nº39
Assim é inaugurada a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, do ano de 1988:
"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".
É este o preâmbulo da CRFB/1988, chamada também de Constituição Cidadã, a carta constitucional pós-ditadura que estabelece as diretrizes do Estado Democrático de Direito brasileiro, refundado a partir da constituinte que foi presidida por Ulysses Guimarães. Em seu artigo primeiro, parágrafo único, diz: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Quando da promulgação da Constituição, em outubro de 1988, Ulysses disse:
"Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
[...]
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo"
Ódio e nojo. São esses os sentimentos reservados aos ditadores, são esses os sentimentos reservados aos autoritários. Para Ulysses, trair a constituição é trair o Brasil.
Já digo onde eu quero chegar.
Dia 30 de outubro de 2022, o também constituinte Lula foi eleito pela terceira vez para o mandato de presidente do Brasil, com mais de 60 milhões de votos. Ele se tornou, com essa eleição, a pessoa mais votada do mundo.
No dia 31, bolsonaristas com anseios golpistas bloquearam as estradas, patrocinados pelos donos de empresas e com apoio - expresso ou tácito - da própria família Bolsonaro. Dia primeiro os bloqueios continuavam. Dia dois os bloqueios continuavam.
Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas, permanecia em silêncio.
Condizente com sua trajetória antidemocrática e autoritária, recusou-se a parabenizar o vencedor ou a reconhecer sua própria derrota. Condizente com sua trajetória fascistoide, aguardou o resultado dos atos golpistas para decidir seu próximo passo: agarrar-se no poder pela força ou se resignar.
Como os atos golpistas não floresceram, Bolsonaro falou durante dois minutos perante a imprensa: mentiu, condizente que é com a sua trajetória, sobre o processo eleitoral e agradeceu os votos que recebeu. Não reconheceu a derrota, não parabenizou o adversário eleito.
No dia três, gravou um vídeo improvisado pedindo aos golpistas que deixassem as estradas, mas reconhecendo neles um grande valor: Bolsonaro e os golpistas compartilham a mesma visão de mundo, que é a visão rechaçada pela Constituição Federal de 1988.
Bolsonaro e os golpistas são, na definição de Ulysses Guimarães, traidores da pátria.
Pediu que deixassem as estradas, pressionado pelos setores que o apoiaram diante dos enormes prejuízos que a aventura estúpida e lunática de uma porção de imbecis fantasiados estava promovendo na economia brasileira, mas os convocou a permanecerem protestando em outros locais, a permanecerem pedindo um golpe insustentável.
Curiosamente, a horda golpista, como um amigo bem apontou, busca na constituição o alicerce para os seus desejos reacionários. É contraditório que um grupelho fascista queira sustentação legal para seus anseios criminosos. Buscam numa interpretação imbecilóide do art. 142 a justificativa constitucional para um golpe militar.
Não há justificativa constitucional para golpe militar.
Golpe é anti-constitucional, golpe é trair a pátria, e aos golpistas será reservado apenas nosso ódio e nosso nojo.
Buscam no parágrafo único do artigo primeiro da constituição a justificativa para os seus atos: todos os poderes emanam do povo, então devemos aceitar as vontades bovinas dessa gente estúpida.
Mas é de novo uma justificativa fundada numa incapacidade interpretativa e numa compreensão de mundo imbecilizada. Primeiro, porque o povo brasileiro escolheu Lula como presidente. Esse é o resultado das urnas. Bolsonaro comprou a eleição, comprou votos, violou o sistema eleitoral, e ainda assim perdeu. Segundo, porque, como estabelece a própria constituição, os poderes do povo são exercidos no limite da legalidade. Como os golpistas fundam suas vontades numa ideia de que são superiores aos demais, acreditam que apenas a eles está reservado o direito de ser povo. Os outros são marginais: favelados, pobres, esfomeados, idiotas.
Mas a eleição vem para eles como um balde de água fria: não importa o quanto queiram monopolizar a cidadania no Brasil; nas urnas, o voto do favelado e o voto do dono de empresa vale a mesma coisa. O povo falou. E o povo ecoou Ulysses:
Ódio e nojo.
E se essa parcela do povo, que implora por um golpe, que implora pela volta da ditadura, que implora por um Brasil em que a classe social seja imperativo legal de capacidade cidadã, como por tanto tempo o foi, se essa parcela é incapaz de lidar com a autonomia da vontade de 60 milhões de brasileiros que rejeitaram a manutenção de um projeto fascista na presidência do país, que essa parcela engula a si própria na sua raiva e no seu preconceito.
Dia 30 de outubro de 2022 foi o dia em que o povo brasileiro votou pela existência de um novo amanhã.
Dia 30 de outubro de 2022 é o preâmbulo de um novo futuro.
O grito dos golpistas é a última vã tentativa daqueles que se recusam a abandonar o passado. A eles, ódio e nojo.
Ao futuro, a possibilidade de se construir.