Estou inaugurando uma seção só de ficção aqui no substack, que, normalmente, eu posto no Medium. Se você já está inscrito na newsletter principal Eu posso estar errado, você está, automaticamente, inscrito nesta seção. Se você não está, pode se inscrever só aqui ou na newsletter principal, em que eu posto textos de não-ficção. Se você não quiser continuar inscrito nesta seção, é só se desinscrever e me mandar um e-mail com seu endereço, dia e hora para que nós possamos trocar soco, resolvendo nossas desavenças.
Quando ele olhou no relógio e viu que ainda eram dezenove horas e trinta e dois minutos, ele respirou aliviado. Quantas vezes já fez esse trajeto em direção a rodoviária? Quantas vezes pensou: hoje sairei mais cedo, só para, impedido por uma sequência quase mística de eventos, sair em cima da hora? Quantas vezes não precisou acelerar o passo — ou correr, pior ainda — pelo terminal, pelas escadas, com as malas nas mãos, pedindo Desculpas, Com licença, Desculpa, buscando prever, com uma precisão quase mística, o movimento das pessoas a sua frente para encontrar o melhor caminho, aproveitar os buracos entre os corpos, não perder a hora? Muitas e muitas vezes, podemos dizer com confiança. E ainda que tenha acontecido muitas vezes, é certo que outras vezes irão acontecer, e que em cada uma delas, ao chegar e olhar no relógio e ver que chegou a tempo, ele respirará aliviado, nunca se iludindo pela vitória temporária, nem achando que, se deu certo até agora, dará certo na próxima, mas também não fingindo costume a ponto de negar o regozijo de, uma vez mais, vencer a imposição da ordem temporal.
Na sua passagem o horário do ônibus estava determinado para às vinte horas. Este é um horário cruel, o horário da passagem, porque gera uma obrigação unilateral e não é um representante fiel da hora do mundo sensível. A ele, passageiro futuro, o horário impõe observância. Para o ônibus, uma sugestão, já que sujeito às mais diversas das adversidades. Se nos perguntam: mas e ele, um indivíduo só, coitado, entre tantos outros, não está sujeito às mais diversas das adversidades e ainda outras mais? A resposta é uma só: sim, é claro que está. Mas as adversidades desse indivíduo, ainda que relevantíssimas para ele próprio, surgem como irrelevantes para a coletividade que espera o ônibus: se o ônibus cumprir a sua parte no trato, isto é, chegar no horário definido na passagem, e o passageiro futuro não estiver lá, qualquer que seja a razão, por mais sensível e capaz de nos causar empatia, o ônibus não lhe esperará. O motorista conferirá as passagens de quem chegou a tempo, o auxiliar etiquetará as bagagens, os passageiros que, desta vez, venceram a ordem temporal, subirão ao ônibus, sentar-se-ão em suas poltronas — assim se espera, mas sem certeza —, ouvirão a advertência do motorista para que utilizem o cinto de segurança e, uma vez fechada a porta e ligado o motor, o automóvel partirá, com ou sem o passageiro futuro que foi impedido de lá chegar a tempo de embarcar. Que é injusto nos parece evidente, mas o que importa?
Desta vez, no entanto, o nosso passageiro chegou às dezenove e trinta e dois, antes do horário marcado. Lá fora, chovia. Chovia bastante. E quando chove, as ruas sofrem, o trânsito para, as horas passam, como sempre, e o atraso é inevitável. Ele pensou nisso ao chegar na rodoviária: espero que o ônibus não atrase muito. Uma esperança vã, como quase toda esperança, que é um fim em si mesmo, ainda que não realizada. Essa esperança, coitada!, revelou-se muito rapidamente vã. Ao descer para a plataforma de embarque, viu o acúmulo de gente em frente ao portão do seu ônibus das vinte horas. No painel acima do portão — lembre-se, eram dezenove e trinta e dois quando ele chegou, dezenove e trinta e quatro quando ele desceu para a plataforma — em letras destacadas estava escrito: 18:30. Puta merda, ele resmungou. Dobrando a aposta na própria esperança, torceu para que o painel estivesse errado, não seria a primeira vez. Chegou perto de uma senhorinha que lhe pareceu simpática e disse: boa noite, tudo bem?, o das dezoito e trinta ainda não chegou mesmo? A aparência da senhorinha estava correta, que respondeu com toda educação: ainda não, o meu é o das dezenove. Puxa vida, ele disse, e ela respondeu: choveu, fodeu. Foi uma surpresa a senhorinha usar um palavrão e essa surpresa fez com que nosso passageiro risse involuntariamente. Agradeceu a informação e procurou algum canto para esperar.
A rodoviária é um ecossistema complexo. Veja, todo mundo está indo para ou chegando de algum lugar, que, no fim das contas, é a mesma coisa com sinal invertido. Pelas mais diversas razões. As pessoas estão deixando para trás alguém ou estão indo ao encontro de alguém. As pessoas estão partindo ou estão voltando. A única constante da rodoviária é o movimento. Pelo tempo do trajeto que cada um fará, uma coletividade de pessoas, quase sempre sem nenhuma relação prévia, divide o mesmo espaço transitório, confiando em um só sujeito, que fica atrás do volante, sobre quem nada sabem. Pode não parecer, mas é um ato de confiança, ainda que muitas vezes realizado inconscientemente, já que ninguém quer ficar pensando nisso tudo cada vez que compra uma passagem de ônibus. Mas lá estão eles. Lá estão eles esperando seus ônibus chegarem, lá estão eles olhando seus celulares, lá estão eles sentados no chão, deitados no chão. Lá estão eles consumindo o café superfaturado da rodoviária. Lá estão eles se lavando nos banheiros. Lá estão eles de coração apertado. Lá estão eles de coração esperançoso. Lá estão eles, insossos. Lá estão eles, ávidos. Lá estão, ignorantes entre si, equilibrados entre si, dependendo um do outro.
E lá está ele, em um canto, esperando seu ônibus das vinte horas. Se o das dezoito e trinta ainda não chegou, ele pensa, e são dezenove e quarenta, então eu vou ficar aqui por um bom tempo. Pensa nisso com alguma irritação, mas uma irritação que não se presta a nada, já que não irá fazer o caminho de volta, já que irá esperar, de qualquer jeito, porque o que o espera no final da viagem é mais importante do que o atraso. Faz cálculos. Uns dez ou vinte minutos depois, chega o ônibus das dezoito e trinta. Uma hora e meia de atraso, mais ou menos, ele pensa. Pensa linearmente, como a cabeça sabe pensar, a cabeça que pensa em narrativas de linha reta, uma palavra depois da outra. Pensa linearmente em um mundo não-linear. Se atrasou uma hora e meia, então o meu chega às vinte e uma horas. É uma conclusão lógica do pensamento linear, mas furada no mundo multidimensional.
Este mundo multidimensional: tudo acontece ao mesmo tempo, o tempo todo. Veja: ele pensa numa progressão linear — se A, então B. Mas o que está acontecendo que ele não vê? Seu ônibus, o das vinte horas, está em algum lugar lá fora. Onde chove. Onde chove bastante. Onde o trânsito parou. Onde algumas ruas alagaram. O motorista deste ônibus, que ele não conhece, está tentando chegar na rodoviária, mas a sua frente estão obstáculos intransponíveis. Ele espera o ônibus, o ônibus tenta chegar, e entre a espera e a tentativa está todo o resto. Ele espera e muita gente espera, compartilhando a agonia de ficar de butuca observando cada ônibus que aparece, pondo os olhos no letreiro e alimentando a esperança de que, enfim, seja o seu! E quando não é, balançam a cabeça em desaprovação, até que o próximo ônibus aparece e repetem o processo. Eventualmente será o ônibus deles — o dele, das vinte; o da senhoria, das dezenove. Eventualmente a esperança irá ser recompensada, mas até lá eles terão que engolir uma frustração depois da outra. Não estão sozinhos nessa espera, mas é como se estivessem. Todas as agonias compartilhadas e não-comunicadas. Toda a expectativa de futuro, não é exagero dizer, dependendo da habilidade de um motorista desconhecido em fazer o ônibus vencer o trânsito, a chuva, as ruas. Ele passa a pensar nesse motorista. Passa a pensar nesse motorista como nunca antes pensou. Que rosto ele terá? Que nome? Que voz? Que vida, além daquela que ele conhece em que o homem se senta atrás do volante e o leva da origem para o destino? Passa a pensar no tanto que não sabe e fica abalado: o que ele não sabe é sempre muito maior do que ele sabe. Passa a pensar no tanto que ele não conhece. Olha ao seu redor e, num crescente desespero, tenta encontrar um, só um, rosto conhecido. Um rosto que ele viu no passado. Um rosto de alguém que ele conhece, de alguém que ele sabe da história prévia. De alguém que não é só um ponto na narrativa, transitório, que se encerrará no agora. De alguém que se estende — para trás e para frente, na sua própria história. Ele busca um rosto como alguém que busca refúgio. Ele busca um rosto como alguém que busca ser visto — se ele encontrar um conhecido, ele também será encontrado, e de repente não será só um ponto nas diversas narrativas que, momentaneamente, se cruzam nesse complexo ecossistema da rodoviária. Imagine um monte de linhas. Um monte de linhas que se tocam uma única vez e seguem em frente. Um monte de linhas — jamais retas, jamais uniformes — que se tocam e se separam num instante qualquer, este instante, da rodoviária, da viagem compartilhada. Imagine que estas linhas representam a sua vida e todas as outras vidas. Imagine o desespero de pensar que há tanto, tanto que não se sabe. Imagine a alegria de, vez ou outra, duas dessas linhas se unirem e não se separarem mais. Ou, ainda que se separarem, tenham se unido de forma tão profunda durante um tempo tão significativo — significativo não na duração, que é só uma das facetas do tempo, mas na sua qualidade — que, ainda que separadas, são permanentemente refletidas umas nas outras. Ele imagina essas linhas. Ele imagina sua própria linha. Ele pensa: quando a linha do motorista irá cruzar com a minha? Ele imagina o retorno da sua linha para a linha para onde ele se dirige, que é a mais importante das linhas na sua vida, que é a linha em que ele se sente em casa. Ele pensa, ele imagina, ele procura um rosto conhecido. Mas não acha nenhum. O ônibus das dezenove chegou e a senhoria do choveu, fodeu embarcada. Ele se alegra. Fica feliz por ela. Dá risada de novo ao lembrar do choveu, fodeu. De repente, não está tão sozinho. Não verá, é mais provável, essa senhorinha nunca mais. Mas puxa um caderninho da mochila e anota: choveu, fodeu. Anota o dia e a hora. Anota para não esquecer de contar assim que chegar ao seu destino.
Ele já planeja:
Você não acredita, uma senhorinha na rodoviária me falou...
Vai começar a contar a história desse jeito e, com sorte, a pessoa que ouvirá essa história irá dar uma risada sincera, a mesma risada involuntária que ele soltou ao ouvir da boca da senhorinha o singelo choveu, fodeu. E ao contar essa história ele operará um pequeno milagre:
Ele pegará o ponto de contato da sua linha com a linha da senhorinha e transportará este ponto de contato para uma terceira linha, e assim uma conexão inesperada e improvável ocorrerá.
Como dissemos, a rodoviária é um ecossistema complexo. É um conjunto de linhas — não retas, não uniformes — muito peculiar.
Ele está comovido pelos seus pensamentos. Está comovido em pensar na grandeza de tudo e no seu diminuto tamanho face a tudo. São pensamentos comuns, ele sabe, mas não deixam de comover quem se propõe a pensá-los. A cidade é muito grande, ele pensa. E uma chuva é capaz de pôr tudo em compasso de espera. A cidade é grande, invencível, até que não é mais. Basta que a água caia do céu, como tem caído desde o início dos tempos, e todo esse intrincado processo de funcionamento da cidade é atrasado, pausado, reconfigurado. E ele, de diminuto tamanho face a tudo, sofre na pele as consequências. A parte e o todo. O motorista também é diminuto, mas o motorista é fundamental. Fica comovido outra vez, pensa em quem será esse motorista. Pensa que para ele não há ninguém mais importante no mundo do que esse motorista, ao menos agora. Pensa que entre ele o futuro está este motorista sem rosto. Pensa: eu vou gravar bem o rosto desse camarada, como uma promessa. Uma promessa de gratidão nunca enunciada. O tempo passa, outros ônibus chegam, o painel se altera.
Já passa das vinte e duas. Ele gastou trinta reais em café e salgado e água. Ele ouviu música. Ele digitou no celular. Ele carregou o celular numa tomada escondida em um canto da rodoviária. E como dissemos anteriormente, ele olhou com crescente esperança e enorme decepção cada vez que um ônibus se anunciou no horizonte e se revelou como não sendo o das vinte horas. Mas, como também dissemos, uma hora, fatalmente, o ônibus dele apareceria. Eram vinte e duas e trinta e nove. O ônibus se anunciou e, quando conseguiu, de olhos semicerrados, identificar o letreiro, leu seu destino: 20:00. O horário é mera sugestão, um identificador num pedaço de papel. O identificador que diz: este é o meu ônibus.
Pegou o celular e mandou a mensagem aguardada: chegou! Recebeu como resposta uma comemoração efusiva. Duas linhas que logo irão se reunir, como se nunca estivessem separadas, como se não pudessem estar.
Quando chegou a sua vez de embarcar, entregou o documento para o motorista, que conferiu seu nome, marcou a lista e disse: pode subir. Ele olhou bem o rosto do motorista, ele olhou os detalhes do rosto do motorista, ele ouviu bem a voz do motorista. Ele fez um esforço consciente de marcar na sua memória aquele momento. Ele fez um esforço consciente para reconhecer no seu íntimo a existência indispensável e fugidia daquele motorista. E então ele agradeceu pelo embarque e por todo o resto, subiu no ônibus e se dirigiu a sua poltrona que, felizmente, estava vazia esperando a sua chegada.