Primeiro, os rótulos de desodorante no banheiro
Como forma de manter a mínima rotina e organização e não pirar de vez, eu tenho tentado, todos os dias, lavar a louça antes de dormir. A ideia de deixar a louça na pia e ir dormir me deixa ansioso por si só. Nem sempre foi assim. Quando eu comecei a morar sozinho (julho de 2016) eu normalmente empilhava louça suja em cima de louça suja e lavava só o que precisava usar. Era um nojo. A situação ficou, óbvio, impraticável. Então eu adotei essa postura no meu apartamento de sempre lavar a louça antes de dormir.
Outra razão para isso é que eu gosto de comer de manhã, então deixar o que eu preciso para o dia seguinte já lavado é necessário para que eu não me estresse na primeira hora do meu dia. O que eu preciso, via de regra, é da garrafa de café (ou da cafeteira, se for o caso), da frigideira, dos talheres e de um prato.
Meu café de manhã quase sempre consiste em café preto, três ou quatro ovos mexidos com requeijão, e duas fatias de pão.
Tudo isso para dizer que antes de dormir eu vou até a pia e, cheio de tristeza no coração, lavo a louça.
Mas antes há algo que eu preciso fazer. Eu não consigo mais lavar a louça em silêncio. Eu não consigo parar na frente da pia, abrir a torneira, pegar a esponja, o detergente, e lavar item por item. Eu preciso colocar algo para tocar. Eu preciso dar play em um capítulo de algum podcast, escolher um álbum, selecionar o vídeo do Casimiro no YouTube.
Eu preciso de alguma ação que me acompanhe.
Eu não consigo focar exclusivamente no ato de lavar louça.
Isso às vezes me toma 10, 15 minutos preciosos (especialmente para alguém com problemas com o sono como eu). Às vezes até mais. E eu fico irritado quando não acho nada que me satisfaça.
Tentei lembrar de como eram os meus dias na infância, um pouco antes de ter internet à rádio em casa. Depois da internet os meus dias eram quase todos gastos na frente do computador (pouco diferente de como é hoje). Antes disso eu tenho maior dificuldade para me lembrar.
Tenho dificuldade para me lembrar dos dias que eu passava em silêncio, sem fazer nada, no puro ócio. Sem internet, sem algo para ver na tevê, sem algo para ver no celular.
Um hábito comum, hoje substituído pela tela do smartphone, era o de sentar para cagar e pegar na pia a embalagem do desodorante para ler o rótulo. Eu gostava de ocupar o meu tempo sagrado no banheiro lendo rótulos. Muita gente fazia isso. Muita gente ainda deve fazer. Eu gostava de ler as indicações de uso, procurar os asteriscos, ver a composição química, a cidade onde foi produzido, pensar no trajeto entre aquela cidade e o meu banheiro. Eu gostava de ver a data de vencimento. Não só do desodorante, mas dos shampoos, dos cremes, dos hidratantes, de tudo.
Era uma forma de ocupar esse pequeno intervalo de tempo morto, em que não se pode fazer mais nada, apenas esperar a ação do intestino.
Isso acabou. Não há tempo morto. Não há mais silêncio algum.
A necessidade de colocar algo para tocar ou um vídeo para passar no celular enquanto lavo a louça é só mais um indicativo de um cenário maior e, para mim, bastante degradante.
Eu não consigo mais me desconectar.
Eu não consigo mais me concentrar em uma tarefa que demande tempo e não pareça, ao menos para mim, na minha perturbada consciência, relevante ou gratificante. A ideia de passar quinze minutos lavando louça sem ver ou ouvir nada me deixa nervoso. A ideia de passar dez minutos estendendo a roupa da máquina, dobrando as roupas do varal, sem saber o que está acontecendo no mundo, sem consumir alguma informação, o que quer que seja, me causa aflição física.
E eu estou mais do que consciente de que isso não é bom, afinal sou eu sofrendo as consequências.
No começo da pandemia, em que, como todos (ou quase todos), tive que ficar invariavelmente dentro de casa (um apartamento de 30m², sozinho, no centro de São Paulo) por meses, eu decidi começar a meditar. A razão para decidir meditar foi simples: eu estava enlouquecendo. Se eu não colocasse algum tipo de ordem na minha própria cabeça, se eu não controlasse minimamente o meu fluxo de pensamentos eu ia surtar.
E a meditação me ajudou. No começo. Quando eu peguei o ritmo (usando um aplicativo, Calm o nome, eu acho), eu senti uma espécie de bem estar corporal, uma clareza mental que há tempos eu buscava. Eu me senti no controle. Eu estava outra vez no controle. O mundo havia desacelerado e eu podia ficar calado, em silêncio, sem lutar contra nada, sem resistir a nenhum impulso, sem me preocupar com os eventos ao eu redor por alguns minutos.
Foi bom. Uma pausa. Um break.
Mas só no começo.
Depois a ansiedade voltou com tudo e disse para mim: tô aqui, otário, se liga. E ela não estava brincando. Eu comecei a me irritar com a meditação guiada. Eu me irritava com as instruções, que pareciam mais atrapalhar do que ajudar. Eu cheguei a responder em voz alta, quase gritando, quando o guia da meditação no aplicativo não parava de falar:
- Se você não calar a boca eu não consigo meditar, porra.
Se você não calar a boca. Se você não parar um segundo.
É uma sensação parecida com as noites de insônia, em que todo ruído, por menor que seja, chega até mim mil vezes amplificado, e meu coração acelera. É impossível relaxar.
Além do stress, o pior efeito colateral dessa dinâmica contemporânea de informações 24/7 é que eu consigo escrever cada vez menos. Eu consigo pensar cada vez menos para escrever. Eu consigo me concentrar cada vez menos para desenvolver uma ideia, uma linha de raciocínio. Constantemente meu fluxo criativo é interrompido por um pensamento aleatório e eu, quase que involuntariamente, pego o celular para ver alguma coisa.
Já falei outras vezes como para mim o ritmo é a coisa mais importante na hora de escrever. Quando eu atinjo o ritmo certo, eu me sinto levado pela escrita, carregado. Tudo fica em silêncio. O ato mecânico de escrever toma conta de mim e eu posso seguir por mil, duas mil, três mil palavras, até a fonte esgotar.
Esse ritmo é o meu controle. E esse ritmo se torna mais difícil de ser atingido dia após dia, porque estou tentando focar em mil coisas ao mesmo tempo, em informações vindas de todas as direções possíveis.
Uma coisa depois da outra, sem parar, sem descanso.
Eu sei que esse não é um problema específico meu, mas um problema maior. Uma relação tóxica e dependente com a tecnologia, com a informação, com as notícias, com o mundo contemporâneo.
Com tudo caminhando meio que na corda bamba, tudo a um tuite de mudar bruscamente, não saber o que está acontecendo parece muito arriscado, e assim o ciclo ansioso se instala. Preciso saber, porque se eu não souber, o que pode acontecer?
É uma falsa sensação de que estar por dentro de tudo o que acontece nos dá algum controle sobre os eventos cotidianos.
Cada minuto desperdiçado com uma atividade inútil vai cobrar o seu preço mais tarde.
Cada minuto em silêncio lavando louça poderia ser utilizado para algo mais produtivo.
Uma coisa depois da outra, sem parar, sem descanso.
Não me entenda mal: eu adoro os vídeos do Casimiro Miguel, mas eu vou ficar bem feliz no dia em que eu conseguir passar 24 horas sem buscar refúgio nos seus bordões engraçadinhos.
Talvez eu devesse deixar a embalagem de desodorante mais próxima do vaso sanitário.