Pronto pra briga
Ficções / Acordou já azedo, percebeu ao abrir os olhos e grunhir. Hoje, tem.
Acordou já azedo, percebeu ao abrir os olhos e grunhir. Hoje, tem. Pôs o pé no chão, esquerdo, já cheio das mais más das intenções. Hoje, é dia. Estalou o pescoço de um lado para o outro, depois os dedos, depois os pulsos. Ao se levantar, alongou os braços e as pernas, boxeador no seu corner. No banheiro, viu-se no espelho e se irritou mais: feição tosca. Culpou os pais, tardiamente, claro, já é homem, já nasceu, mas ressentiu a inescapabilidade do DNA. Tomou nota de levar a reclamação para o próximo encontro de família enquanto cogitou ir ao dentista para fazer botox, quando o que queria, mesmo, era uma limpeza nos dentes, e sentiu o ódio bater na goela: botox em dentista? Puta que pariu. Cuspiu o enxaguante bucal na pia. Vestiu-se, arrumou a gola da camisa e foi em busca do seu objetivo: ai! de quem hoje cruzar o meu caminho.
Logo ao tirar o carro da garagem e alcançar a rua teve a chance de satisfazer o seu desejo. O trânsito é o lugar perfeito para exercitar a sua cidadania. Estava na faixa da direita e, pelo retrovisor, viu outro carro se aproximando pela faixa da esquerda, mais rápido. Sem dar seta, meteu seu veículo para o lado e o motorista que estava vindo buzinou e freou para evitar a batida. Seu coração estava acelerado e pronto: hoje, sim. Meteu a mão para fora do vidro, ergueu o dedo indicador e berrou Tá cego, ô filho da puta? O rapaz que dirigia o outro carro foi para a direita e emparelhou ao seu lado quando chegaram no semáforo. Abaixou o vidro da direita e repetiu: Tá cego, ô filho da puta? O rapaz abaixou o seu vidro e respondeu: me desculpa, estava distraído. O semáforo abriu e o rapaz foi embora. Não é possível, pensou. A garganta secou. Seguiu viagem.
Parou no estacionamento do trabalho e, antes de subir para o escritório, passou na padaria que ficava ao lado para pegar um café. Riu sozinho: agora vai. Um pedido errado, o pão na chapa atrasado, o café frio, as chances eram muitas para dar um soco no balcão. A mocinha o recebeu com um bom dia não correspondido e anotou o pedido: café preto, QUENTE e novo, se for velho, não quero, coado, na xícara grande para não cair para os lados e cagar com tudo, pão na chapa com manteiga DOS DOIS LADOS, não muito, para não encharcar o pão, nem mixaria que não dá para sentir o gosto, um copo de água DA CASA, de graça, que é meu direito, com duas pedras de gelo. É pra já, ela disse, sem parecer incomodada. Ele se incomodou. Mas haveria tempo.
Veio a água, da casa, de graça, com duas pedras de gelo. Veio o café preto, quente, na xícara grande. Tomou um gole e o café estava ótimo. Grunhiu. Chegou o pão: amarelinho brilhante, a manteiga derretida no ponto exato da alquimia do chapeiro profissional. Inacreditável. O que faria? Deu uma mordida no pão: caiu farelo em seu copo. Se não tomasse cuidado, deixaria escapar um sorrisinho no canto do rosto. Ergueu um dedo e a mocinha veio até ele. Pois não?, sorrindo. Apontou para o pão e para o farelo: Olha isso, olha isso. A mocinha olhou aquilo, olhou aquilo, sem saber o que estava vendo. O pão todo farelento, pelo amor de Deus, é pão velho? A mocinha disse que não era, não, era pão de hoje, Mas me desculpe, vou trocar agora, e pegou o prato com o pão mordido. Uns minutos depois, chegou o novo pão. Amarelinho brilhante, alquimia perfeita etc. Um gole no café, um gole na água. Uma mordida no pão. Não caiu farelo. Puta merda, pensou.
Deixou o dinheiro em cima do balcão para não ter que falar com a mocinha outra vez, irritado que estava com a alta qualidade do atendimento.
Mas no trabalho? No trabalho não teria como. O trabalho é como o trânsito: sempre tem chance de acidente fatal com a quantidade de jumentos indo para lá e para cá. Sentou-se em sua mesa, ligou o computador e abriu a agenda do Teams. Duas dezenas de prazos fatais para aquele dia. Algum subordinado faria algo de errado, claro que faria, e aí tudo estaria resolvido. Hoje, até que enfim. Abriu o e-mail. Tinha 12 mensagens não lidas na caixa de entrada. Abriu uma a uma. Das 12, 10 eram entregas dos prazos fatais. Pelo amor de Deus, que eficiência é essa? Estão me perseguindo. Outros dois e-mails eram respostas de alterações que ele solicitou, enviadas antes do prazo. Abriu. A primeira, feita de acordo. A segunda, perfeita. Apertou o mouse com força, sentindo as molinhas gritarem sob a força dos seus dedos. As entregas continuavam chegando e uma a uma ele foi ticando os prazos, até a lista se encerrar.
Tudo bem, tudo bem, agora era hora de conferir e a conferência sempre lhe dava a oportunidade de ser feliz: a incompetência é a regra. A raiva na goela foi ficando amarga. As entregas estavam excelentes. Todas feitas da forma como ele orientou repetidamente. Bufou. A culpa é minha, disse, A culpa é minha, que tornei esses idiotas em funcionários competentes. Chegou na vigésima entrega, 20 de 20. A última chance. Já estava no meio da tarde, pulou até o almoço na esperança de encontrar o mais belo dos erros no trabalho alheio. Abriu o documento e começou a ler. Um trecho estava com marcas de alteração e um comentário ao lado: conforme anteriormente orientado pelo sr. Tamborilou a mesa com a ponta dos dedos, do indicador ao mindinho, repetidamente. Procurou a conversa na caixa de e-mail com o responsável pelo documento e viu que ele havia, realmente, orientado o funcionário a fazer aquela alteração. Agora, no entanto, ao reler, percebeu que a versão original estava melhor. Maravilha, ótimo, glória a Deus. A chance estava em suas mãos, a bola na marca do pênalti.
Prezada, não entendi a marca de alteração. Em momento algum fiz tal orientação, nem indiquei a mudança, que ficou péssima. Favor refazer da forma original e me enviar impreterivelmente hoje, até às 18h.
Anexo, o documento. Criou uma nova corrente de e-mails, deixando para trás aquele em que ele havia determinado a alteração.
Já ensaiava o esporro em sua cabeça: a mocinha lhe encaminharia o seu próprio e-mail, indicando que a alteração havia, sim, sido solicitada, e ele usaria a oportunidade para reafirmar a sua autoridade, deixando claro que quem mandava ali era ele e só ele, e que ele jamais pediu a alteração daquele jeito, ela que não sabia ler, era analfabeta, por acaso? Descambaria rapidamente para a grosseira, chamaria a mocinha até a sua sala e, antes que ela fechasse a porta, começaria a gritar para que todos ouvissem. Se Deus fosse bom e justo, ela até choraria, primeiro de raiva, por estar com a razão e ainda assim e estar tomando esporro, e depois de tristeza pela impotência da situação. Seus pelos se eriçaram de tesão pensando no post que ela faria nas redes sociais reclamando do absurdo vivido, outra oportunidade para um novo esporro.
Enviou o e-mail às 17h38min. Se ela não visse a tempo, melhor ainda: esporro redobrado, por perder o prazo arbitrário.
Olhando para a tela, o coração estava acelerado com toda a animação. 17h41min ela reagiu com um joia ao e-mail.
Frustrante. Porém, sem desespero. Hoje, ainda hoje, ela vasculharia os e-mails e notaria que não havia cometido erro nenhum. Inevitavelmente ela iria se defender. Hoje, sim.
17h53min. RE:. A resposta ao seu e-mail. O arquivo anexo com o final “_v2alterado”. No corpo do e-mail, uma mensagem singela:
Conforme orientado pelo sr, removi a alteração e deixei a versão original. Peço desculpas pelo equívoco.
Atenciosamente,
Puta que me pariu três vezes. Sequer abriu o documento. Desligou o computador e saiu da sala pisando duro. Ninguém tem colhão nesse mundo? Ninguém tem VERVE? Ninguém tem BRIO? Seus punhos doíam: estavam prontos para a briga o dia todo e não foram utilizados. Sentiu azia com toda a raiva mal digerida e incapaz de ser direcionada pela falta de cooperação de terceiros.
Voltou para casa buzinando para todos os outros motoristas, pedestres, cachorros. Ninguém reagiu. Um cachorro mostrou a língua e parecia estar sorrindo.
Deus me abandonou, pensou dentro do carro.
Estacionou na garagem do prédio, ignorou o boa noite do porteiro e subiu para o seu apartamento. Ligou para a mãe, que não atendeu, e resmungou: Já falei mil vezes para ficar perto do celular, nessa idade. Pensou em reclamar na caixa-postal, por ela não atender e por ela tê-lo feito com essa feição tosca, mas desistiu. Do que adianta reclamar sozinho? O que interessa é a reação, a trocação franca, o ódio compartilhado na violência gratuita. Teria outras chances.
Ao fim do dia, deitou-se e, depois de algumas horas com o coração palpitando diante de tanta raiva ressentida e incapaz de ser direcionada, apagou.
Acordou já contente, percebeu ao abrir os olhos e sorrir. Hoje, tem. Tem um bom dia. Pôs o pé no chão, direito. Alongou-se, escovou os dentes, enxaguou a boca, viu-se no espelho e se achou até que agradável etc. Desceu para a garagem, entrou no carro e ganhou a rua. Um motociclista vinha pela sua direita, cortando o trânsito. Ele tentou dar passagem, mas a moto não tinha espaço para atravessar. Esticou a mão para fora e, perto do motociclista, pediu desculpas e desejou ao homem de capacete um bom dia.
O homem lhe encarou, ergueu a viseira e, com os olhos firmes em sua direção, respondeu:
Vai tomar no cu, velho burro do caralho, comprou a carta?, disparando em seguida pelo sinal vermelho.