Eu posso estar errado

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Simples, sem tomate, com duas salsichas

gschincariol.substack.com

Simples, sem tomate, com duas salsichas

The Bear e o carrinho de lanches na praça ao lado da minha casa

Gabriel Schincariol Cavalcante
Feb 5
1
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Carmen “Carmy” Berzatto, The Bear

(aviso: é claro que terão spoilers no texto)

Eu decidi embarcar no hype da internet e assisti The Bear. O hype estava certo.

A série de oito episódios é centrada em Carmen “Carmy” Berzatto, um chef em ascensão, que trabalhava em um dos melhores restaurantes do mundo até abandonar o emprego para assumir a cozinha do quase-falido The Original Beef depois que o seu irmão, Michael, dono e fundador do restaurante, comete suicídio.

Durante a série há uma tensão crescente dentro do The Beef, mediada pelo luto mal processado de Carmy e Richie, gerente e melhor amigo de Michael, pela falência iminente do restaurante, pela relação conflituosa entre o passado e o futuro, pela resistência em abraçar a mudança. Ao mesmo tempo, é a comida o laço que une todos os personagens da série, que mantém a história em marcha.

Foi por meio da comida que Carmy e Michael construíram o amor entre eles. Foi por esse amor, por essa admiração e também pelo ressentimento que Carmy sentia em relação ao irmão - Michael proibiu Carmen de trabalhar no The Beef enquanto estava vivo - que o protagonista decidiu ser um chef.

Foi por causa do talento de Carmy como chef que a sous chef Sidney Adamu decide trabalhar no The Beef. Foi por causa das lindas imagens de bolos e doces que Marcus, responsável pelos pães, viu em uma vista sobre gastronomia que ele ficou fissurado na ideia de produzir o donut perfeito (e produziu). Foi por causa da qualidade da receita de Sidney que Tina, uma das mais antigas funcionárias do restaurante e a que mais resistia às alterações impostas por Carmy e pela sous chef, decidiu mudar as suas práticas.

Ainda que os conflitos dentro da cozinha não parassem de crescer, assim que os personagens se sentavam a mesa para comerem juntos, o sabor do prato se sobrepunha às diferenças. Assim que eles experimentavam a receita uns dos outros, as tensões cessavam, ainda que momentaneamente, para que eles pudessem apreciar a experiência gastronômica.

Em diversas cenas, personagens que estavam em confronto se veem obrigados a dizer, mesmo que por meio de xingamentos, que a comida que o outro fez estava maravilhosa: Richie com o prato feito por Carmy; Tina com o prato feito por Sidney; Sidney revelando que a melhor comida que ela já provou foi a preparada por Carmen; Carmy com o donut feito por Marcus

Depois do ponto de inflexão da trama, em que a pressão acumulada explode, é a relação proporcionada pela comida o que faz com que todos se unam, de novo, pela última vez na cozinha no The Original Beef e pela primeira vez na cozinha do The Bear.

The Bear

A série é boa por diversos motivos: as atuações são excelentes, o roteiro é escrito com uma beleza admirável, a construção do conflito é pulsante. Você termina o último capitulo entrando no YouTube e procurando uma receita para brincar de chef. Você fica ansioso no decorrer do episódio com o ritmo frenético da cozinha.

Mas o principal motivo, para mim, foi a representação da comida como uma espécie de instrumento de coesão social: enquanto eu assistia The Bear, eu percebi que a maioria das minhas memórias - as melhores memórias - são acompanhadas por alguma refeição, algum restaurante, algum alimento.

Eu percebi que os grandes afetos da minha vida advém da memória de temperos, sabores, cheiros.

Percebi que sempre que eu me sento para comer um estrogonofe, eu me lembro do estrogonofe da minha mãe, o melhor que eu já tive. Sempre que eu faço um café, eu me lembro que a minha mãe, que sequer bebia café, passava um fresquinho de manhã quando eu acordava, e enquanto eu tomava esse café nós conversávamos sobre amenidades da vida,, as únicas conversas que importavam. As lembranças da minha avó passam pela parmigiana que ela fazia, uma coisa de outro mundo, uma experiência mística; pelos pães de forma torrados com manteiga, acompanhados de nescau, quando eu era criança. Sempre que eu me lembro do meu pai, eu me lembro de uma vez em que jantamos na sua casa e ele fez arroz papa com pedaços grandes de cebola, acompanhado por salsicha enlatada, e naquele momento não parecia haver no mundo refeição melhor. A feijoada da minha sogra. O açaí ou a batata com cheddar de Barbacena. O restaurante improvisado da Av. do Café em Ribeirão Preto, onde íamos almoçar para fugir dos dias intragáveis do bandejão. As padarias onde eu e a Marina vamos tomar café da manhã. Todas as reuniões da família e dos amigos - aniversários, casamentos, velórios, apenas um motivo para estarmos juntos, o que quer que seja - são construídas a partir do elemento comum: a comida.

Essas lembranças, marcadas pelas comidas que as acompanham, pelos locais físicos em que elas foram produzidas, são algumas das mais vívidas dentro da minha cabeça. A gastronomia é o nó que amarra todo o resto, que impede a fragmentação. É como se cada vez que eu faço uma refeição eu estivesse relembrando todos os passos que eu já dei até então, como se o tempo não fosse opressor, mas um processo contínuo de acolhimento inevitável.

Um desses passos, que se estende do passado ao presente e que resiste ao esquecimento, é marcado por um simples carrinho de lanche que ficava na pracinha logo ao lado da minha casa.

Simples, sem tomate, com duas salsichas

Seu Zé em frente ao trailer. Origem: https://conteudo.solutudo.com.br/boituva/um-completo-para-o-meninoa-ali-todo-boituvense-sabe-de-quem-e-esta-frase/

Eu não devia ter muito mais do que 10 anos quando eu me mudei para casa em que eu moraria até o dia em que, aos 17 anos, fui embora de Boituva para Barbacena, que também foi o dia, ainda que naquele momento eu não pudesse saber, em que Boituva deixou de ser a minha casa para nunca mais voltar a ser.

Nós havíamos voltado do Rio de Janeiro quando eu tinha seis ou sete anos; primeiro moramos em uma casa na frente de onde a minha avó morava, por pouco tempo, depois em um apartamento, por mais tempo. Então nos mudamos para essa casa, que fica no térreo de um conjunto de três prédinhos de um só andar.

Mudar de casa é sempre mudar de ambiente social: no apartamento onde eu morava eu havia feito amigos que também moravam no mesmo prédio, e a minha vida basicamente girava em torno desses amigos, do que eles faziam, do que eles deixavam de fazer. Sair daquele apartamento e ir para outro lugar significava deixar esses amigos para trás. Claro, eles continuavam a uma curta caminhada de distância, mas esse tipo de distância, especialmente na idade que tínhamos, é uma distância cujo aspecto físico é o menos relevante entre todos os aspectos.

Com uma natural dificuldade para me relacionar, eu estava outra vez no desconhecido. Passava a maior parte do tempo dentro de casa, descobrindo os detalhes das novas paredes, do novo teto, do novo piso, investigando as rachaduras, observando o movimento dos carros que passavam na rua que dava para a nossa porta. Ao lado dos prédinhos havia uma praça com um gramado, e logo eu passei a explorar a região, correndo pela grama, encenando brincadeiras, rolando pelo chão. Eu e aquele novo espaço estávamos nos conhecendo.

E o que logo me chamou a atenção foi que nessa pracinha tinha um carrinho de lanches, um carrinho pequeno, em que cabia apenas uma pessoa dentro. Nessa época a minha refeição favorita era o cachorro-quente - a simplicidade do pão, do molho e das salsichas me ganhava todas as vezes. O carrinho estava sempre lá, aberto na maior parte dos dias, e não levou muito tempo até que eu pedisse dinheiro para a minha mãe para fazer a compra do meu primeiro cachorro-quente no carrinho da Maisa.

A Maisa, como o nome sugere, era a responsável pelos lanches. Ela sempre estava no comando da chapa, enquanto o Seu Zé, o marido, gerenciava os pedidos. O meu favorito era o cachorro-quente simples, sem tomate, com duas salsichas. Devia custar R$2,50 quando eu comi lá pela primeira vez.

Eu pedia para o Seu Zé, que recebia o dinheiro, devolvia o troco, e dizia: Maisa, prepara um simples, sem tomate, com duas salsichas para o menino. E aí era só esperar.

Devo ter feito esse pedido mais de uma centena de vezes. Tantas vezes, que não precisava mais pedir, porque o Seu Zé sabia o que eu ia querer, a não ser que, por algum motivo especial, eu decidisse mudar, o que quase nunca acontecia. Simples, com duas salsichas, sem tomate. É importante cultuar hábitos.

Você pedia para o Seu Zé, ele passava para a Maisa, você se sentava ao redor do carrinho e esperava a sua vez. Fui lá com a minha irmã, com a minha mãe, com os amigos que eventualmente fiz por ali. Fui lá sozinho, a maioria das vezes. Passava lá quando estava indo para algum lugar e sentia fome. Passava lá quando estava voltando de algum lugar e sentia fome. E o Seu Zé nunca falhava: um simples, sem tomate, com duas salsichas para o menino. Era o ponto de equilíbrio, a constante de todos os dias.

Do momento em que nos mudamos para essa casa até o dia em que, aos 17 anos, eu fui embora de Boituva, a Maisa continuou lá. O carrinho virou um trailer, que se mudou para o outro lado da rua, mais perto ainda da minha casa. A Maisa pendurou as espátulas e outros funcionários assumiram a chapa. O Seu Zé seguiu como responsável pelos pedidos, agora anotados em uma comanda, porque o número de clientes foi aumentando com o tempo. De tarde ou de madrugada, o lanche da Maisa estava lá.

E ele continua lá. A Maisa faleceu já há alguns anos e a filha dela, junto com o Seu Zé, deram continuidade ao negócio da família. Dezenas, centenas de lanches por dia. Milhares de lanches por ano. De tarde até de madrugada, a constante de todos os dias.

E se eu voltar em Boituva hoje, como eu volto de vez em quando, agora invariavelmente como visita, sempre acompanhado de uma passagem de volta, o trailer da Maisa vai estar aberto, firme no tempo e no espaço, como um palácio da minha própria memória, que resiste ao caráter transitório de todas as coisas.

A âncora da memória

Todas às vezes que eu volto para Boituva eu tenho a sensação de que aquela cidade é a mesma, imutável perante o tempo, incapaz de mudar; paralelamente, a Boituva para a qual eu volto sempre está diferente daquela que eu deixei. Um muro caiu, uma rua mudou de sentido, uma loja fechou, outra abriu. A cidade se transforma sem nunca se alterar.

Mas o lanche da Maisa permanece onde ele está. Todas as horas do dia. Já não sei quantos anos se passaram desde a última vez em que eu pedi um simples, sem tomate e com duas salsichas. Eu sequer sei porque eu pedia sem tomate; acho que era um impulso da infância de rejeitar qualquer coisa que parecesse saudável. Porém, eu continuo indo até lá sempre que eu posso.

Não sou capaz de dizer se o lanche da Maisa é bom ou não. Não sou capaz, porque não tenho condições de formular um juízo objetivo sobre isso: o meu gosto é absolutamente enviesado pela experiência afetuosa, enuviado pela memória. É provável que muitos outros lugares façam lanches melhores, objetivamente falando, mas o sabor nunca é objetivo. Quando estou em Boituva e vou até o trailer da Maisa, eu estou testando a resistência da âncora do meu próprio passado. Peço um cachorro-quente, peço um lanche de frango, peço um x-burguer. Depende do dia. Peço, sento-me em uma das cadeiras e espero o meu número ser chamado. Se o Seu Zé está lá - ele parece estar lá cada vez menos -, conversamos por alguns minutos. Ele continua me chamando de menino, como ele chama a todas as outras pessoas, e eu me reconheço.

O carrinho de lanches da Maisa é um ponto fixo para onde eu posso olhar: esse é um truque antigo para quando tudo ao seu redor parecer instável demais, a ponto de desmoronar. O ponto fixo é o nosso lugar-comum, como todas as refeições que compartilhamos.

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