Sob o bandeirão
Minha primeira e última vez no Pacaembu, com os olhos cobertos pelo bandeirão
Às dezesseis horas do dia 10 de maio de 2008, o árbitro apitou o início da partida entre Corinthians e CRB, estreia do time paulista na Série B. No Tobogã, a histórica arquibancada que ficava atrás de um dos gols do campo, eu ainda estava em êxtase quando o bandeirão da torcida subiu e cobriu a minha cabeça. Era a minha primeira vez no Pacaembu, vendo o meu time do coração jogar, e eu não tinha como saber que seria a última.
Cresci torcendo pelo Corinthians a distância. Morando fora da capital, assisti Tevez e Nilmar carregarem o time de 2005 ao título brasileiro pela televisão. Em 2007, assisti todos os jogos da campanha do rebaixamento, sendo visita constante nos bares de Boituva que colocavam na TV o pay-per-view quando a partida não era transmitida pela Globo. Eu era, via de regra, o mais novo dos corinthianos presentes, mas ninguém parecia se importar: eu pedia minha coca-cola, eles, suas cervejas, e nós gritávamos juntos, chorávamos juntos, comemorávamos juntos.
Quando a internet ainda era um lugar do qual era possível entrar e sair, a comunidade do Corinthians no Orkut era meu ponto de encontro diário. Após os jogos, eu passava horas lendo os comentários, as análises, os desabafos. Caminhávamos para o desastre — o primeiro rebaixamento da história do clube. Os esperançosos negavam a possibilidade: time grande não cai. A camisa pesaria. Os pessimistas autorrealizavam suas profecias a cada nova derrota. Os realistas olhavam para o campo e tentavam crer, mas falhavam: um time com Zelão, Iran e Ailton Barril não tinha chance de sucesso.
Acho que aceitei, no meu coração, o rebaixamento quando em jogo contra o Goiás, já na reta final do campeonato, o pênalti mais inacreditável da história do futebol foi cometido: Iran tentou dar uma bicicleta dentro da área e acertou o jogador adversário em cheio. Um pênalti de bicicleta. O camarada subiu no ar e deu uma bicicleta no adversário, dentro da própria área. Felipe, goleiro do Corinthians, defendeu a cobrança, mas eu havia lido os sinais como as cartas de tarô ou os signos nas estrelas: um time que faz um pênalti de bicicleta não tem condições de permanecer na primeira divisão.
Dito e feito. Fomos rebaixados na última partida do campeonato, em jogo contra o Grêmio, que assisti de casa e terminei em prantos.
O futebol faz essas coisas com a gente.
Porém, o que eu ainda não sabia era que o rebaixamento do Corinthians me permitiria realizar um sonho que parecia distante: assistir um jogo do meu time no estádio.
Foi uma divertida crônica do ótimo e corinthiano Eduardo Galduróz que me fez lembrar desse dia em que fui ao Pacaembu assistir o Corinthians jogar. Organizaram uma excursão saindo de Boituva logo pela manhã, chegando no Parque São Jorge e, a tarde, quando a hora do jogo se aproximasse, o ônibus levaria os torcedores ao Pacaembu, retornando à Boituva com o apito final.
Eu tinha 14 anos em 2008 e meu então cunhado era, para a minha sorte, também corinthiano. Graças ao preço acessível dos ingressos para o futebol de segundo escalão e a presença do meu cunhado, que se não era adulto, não era uma criança, minha mãe concordou com a minha ida ao jogo.
O ônibus estava cheio de marmanjo trajando vestimentas de torcida organizada e eu era, outra vez, o mais novo da turma, mas assim como acontecia no bar a nossa comunhão se dava pelo Corinthians, então ninguém se importava com a minha idade. Eles tomavam suas cervejas, eu minha coca-cola, e nós seguíamos em direção a capital para vermos o coringão jogar.
Chegamos cedo no PSJ, assistimos alguns minutos do treino dos reservas, encontramos o Dinélson, uma das muitas eternas promessas do futebol brasileiro que surgiu no Guarani e veio cedo para o Corinthians, sendo emprestado para o Paraná, onde fez sua melhor temporada até estourar o joelho, sem nunca conseguir concretizar o futebol que lhe prometeram os deuses. Tiramos foto com ele, porque a mim não importava se era o Dinelson ou o Ronaldo Fenômeno: eu estava ao lado de um jogador do Corinthians e queria o registro.
Depois do almoço, fomos para o ônibus e partimos rumo ao Pacaembu, a casa sentimental do Corinthians por muitos anos. Todo corinthiano pré-Arena aguentou provocação por torcer para um time sem estádio. A provocação, no entanto, era só meia verdade: o Paca sempre foi a nossa casa. Ali, o Corinthians e o corinthiano foram felizes. E foram tristes, também, porque é assim que o futebol se desenrola. O estádio municipal tinha a cara, a cor, o cheiro do Corinthians. Ao pôr meus olhos no concreto que se erguia na Praça Charles Miller, eu me emocionei. Enfim, em casa. Enfim, no lugar em que eu sou mais um desse bando.
Atravessamos o portão e o gramado se estendeu diante de nós, cercado pelas arquibancadas de cimento. Fui tomado pelo poder avassalador da grandeza da história: muita coisa tinha sido testemunhada por aquele espaço em que agora eu punha os meus pés. Eu era um hóspede do tempo e assim me comportei, com reverência e respeito.
Subimos os degraus do tobogã e nos posicionamos atrás de um dos gols. A torcida começava a encher o estádio. Os times entraram em campo.
TODO PODEROSO TIMÃO, gritávamos em uníssono.
Poropopópópópópó.
Nossa corrente é forte e jamais se quebrará.
Feito um corpo coeso, a torcida se preparava para o apito inicial. Éramos um só, em nossas infinitas diferenças, interligados pelo Corinthians.
Às dezesseis horas, o árbitro apitou, a bola rolou e a torcida explodiu.
Assim que o jogo começou, o bandeirão do Tobogã começou a ser levantado. Em alguns segundos, estávamos todos sob o tecido que exprimia nosso amor pelo clube. Não era possível ver o jogo, mas não importava — ali embaixo, cumpríamos nosso papel naquela cerimônia.
Corinthians veio pra vencer, Corinthians veio pra vencer, repetia a torcida.
Alguns instantes depois, o bandeirão desceu. Nossos olhos encontraram o gramado outra vez, mas eu não acreditei no que eu estava vendo. Os jogadores do CRB, adversário do Corinthians, comemoravam, enquanto os nossos jogadores balançavam a cabeça e se incentivavam.
Gol deles. No primeiro lance do jogo. Enquanto estávamos sob o bandeirão.
A minha primeira vez no estádio e eu perdi o gol.
Estava incrédulo e impressionado e quis rir.
Olhei ao redor e foi aí que notei: boa parte da torcida não tinha percebido que tinha sido gol. Estavam eufóricos, injetados com a mais pura adrenalina da paixão coletiva, e se regozijavam na própria celebração. O jogo estava em segundo plano. Foram alguns minutos até os ânimos se alinharem ao que estava acontecendo dentro do campo.
Não demorou até que Herrera, apelidado carinhosamente pela torcida como quase-gol, o voluntarioso jogador argentino de pouca técnica, muita vontade e uma aptidão mística para quase fazer gol, uma espécie de precursor espiritual do Ángel Romero, ambos hispanohablantes, marcasse o tento de empate, que fez explodir a arquibancada.
Entre os gritos, eu e o camarada que estava ao meu lado, um desconhecido, nos abraçamos e celebramos o gol. Esse Herrera é foda, ele disse, e eu concordei. Raçudo, ele disse, e eu concordei. É bom de bola, ele disse, e eu, apesar de não concordar, assenti com a cabeça. A alegria do camarada, no entanto, logo se dissipou: o placar eletrônico logo atrás de nós mostrou 1x1. Com o pescoço torcido para trás, ele ficou enfurecido.
Tirou o cigarrinho diferenciado da boca, colocou atrás da orelha e gritou: TÁ ERRADO, JUIZÃO!, apontando para o placar. Olhou para mim: tá errado, olha lá, tá marcando 1x1, mas tá 1x0, tá errado!
Não era só ele: outros torcedores desavisados, vítimas do bandeirão, também resmungavam. Contra tudo e contra todos, memo, enfim disse o camarada.
Eu, que sabia que não estava errado, mas que também não tinha qualquer intenção de contradizer meu irmão de arquibancada, tampouco me meter em confusão, concordei. Contra tudo e contra todos.
O Corinthians ainda faria mais dois gols - outro do Herrera e um do Chicão, o excelente zagueiro artilheiro. O jogo acabou em 3x2.
Vencemos a primeira partida da série B, campeonato do qual seríamos campeões ao final da temporada com a melhor campanha da história, voltando à elite do futebol brasileiro.
Eu, porém, não voltei ao Pacaembu — só depois da inauguração da Arena Corinthians, em Itaquera, eu assistiria os jogos do meu time no estádio outra vez. Longe do seu mais prodigioso filho, o Pacaembu perdeu o brilho, como um pai que parece perder seu propósito ao entregar o rebento ao mundo, agora pronto para viver sua própria vida. Em 2018, o estádio foi privatizado e a história do futebol paulista — e da cidade de São Paulo — foi entregue nas mãos da iniciativa privada, que, no fim das contas, não tinha nenhum interesse em preservá-la. Em 2021, o Tobogã foi demolido. Até hoje as promessas da concessão não se concretizaram, e o concreto que se ergue na Praça Charles Miller que um dia serviu de palco para que os corações dos apaixonados pelo futebol pudessem bater, seja pela alegria da vitória ou pela tristeza da derrota, agora se converte, dia após dia, em escombros de si mesmo, insuportavelmente inesquecível.
A primeira e a última vez que pisei nas arquibancadas do Pacaembu foi para ver o meu time jogar, e o primeiro gol que eu presenciei naquele estádio eu não pude ver, pois estava sob o tecido do bandeirão corinthiano. Com os olhos cobertos, não vi o gol, mas não importava. Não importa. Me dou conta de que, até hoje, nunca vi os lances daquela partida, o que seria facilmente encontrado na internet. Até hoje não sei como foi o gol que aconteceu diante de mim sem que eu pudesse vê-lo.
Não importa.
Não procurarei e se puserem diante de mim o vídeo, já aviso de antemão que cobrirei os olhos.
Quero a lembrança como ela é: a escuridão sobre o bandeirão, a paixão pelo Corinthians, o grito da torcida. O gol é só um detalhe, ainda que, entre os detalhes, seja o mais valioso de todos.
vai corinthians!