Sobre heróis e vilões: a história de um mundo misturado
Tudo seria tão mais fácil se as pessoas fossem mais simples.
Mas então nada seria como é, nós não seríamos quem somos, e nada precisaria ser dito ou escrito, porque tudo estaria explicado e terminado, assim, prontinho.
Minha mãe era a minha melhor amiga. É importante que eu diga isso de antemão. E eu digo que ela era a minha melhor amiga consciente do que isso quer dizer, e digo recusando a ideia básica de pai/mãe como herói, ou o discurso tradicional de pai/mãe como aquele que te compreende melhor do que ninguém. Minha mãe era a minha melhor amiga porque nós nos desentendíamos o tempo todo e nossos desentendimentos caminhavam sempre no sentido do crescimento.
Nem sempre foi assim.
Da minha infância para a adolescência nossas vidas - eu, minha irmã, minha mãe - passaram por profundas mudanças envolvendo dinheiro, envolvendo nossas relações e envolvendo o resto da família. Para mim o impacto foi grande e deixou marcas. Para a minha mãe o impacto foi maior, porque além das consequências diretas ela teve de lidar ainda com as consequências indiretas sobre os seus dois filhos, por quem ela era responsável - a única responsável, para falar a verdade.
Foi nesse período que eu e a minha mãe passamos a ter brigas constantes e eu fiz planos (planos efetivos, não a cena do desenho animado de ir embora com uma sacola presa na ponta de um pedaço de pau) de sair de casa e não voltar mais. De sumir dali. De nunca mais aparecer.
Os planos nunca se concretizaram.
Uma cena que ficou marcada na minha memória:
o dia em que a minha mãe deitou no meu colo e chorou de medo do futuro.
No momento em que isso aconteceu eu não senti compaixão ou solidariedade, eu senti uma espécie de raiva egoísta - eu era uma criança, eu era um menino, eu não deveria ter que lidar com aquilo.
Foi só depois que eu entendi.
Eu entendi que acontecesse o que acontecesse, minha mãe confiava em mim para se deixar vulnerável e chorar de medo.
Não era uma heroína.
Não era feita de ferro.
E não sendo uma heroína e não sendo feita de ferro, eu não era um objeto para ela, um subalterno, eu era uma pessoa. Eu era uma pessoa inteira.
Eu era um igual. Semelhantes.
Se foi difícil no começo, mais tarde foi extremamente valioso.
Nossas diferenças eram enormes e nossas semelhanças eram enormes, o que não é paradoxal. As pessoas são assim, cheias de complexidades. E eram tanto as nossas diferenças como as nossas semelhanças que geravam conflitos, e eram tanto as nossas semelhanças como as nossas diferenças que geravam nossa profunda conexão.
Foi a partir do dia em que eu entendi que a minha mãe era gente, e que gente é assim, surgida das nuances, das incoerências, de vai-e-volta, que eu pude me permitir ser, também, gente.
É dessas incoerências que eu sinto falta todos os dias, porque as incoerências do outro permitem a mim enxergar as minhas própria incoerências, e delas fazer sentido, compreender algo que antes eu não compreendia, tornando-me mais completo.
Riobaldo fala pro interlocutor-leitor, em Grande Sertão: Veredas, da sua dificuldade em lidar com esse mundo de misturas, em que o certo e o errado não vêm categorizados, nem com aviso prévio:
"o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado".
Quero os todos pastos demarcados. Como é que posso com este mundo?
Mais fácil seria um mundo sem misturas. Mas seria?
Que mundo seria esse, sem sutileza alguma? Que mundo seria esse, em que duas cores não se chocam para formar uma terceira?
Um outro mundo, um mundo impossível e preto e branco.
A busca por ídolos (ou vilões) sempre esbarra nesse fato imperioso de as pessoas não serem criaturas simples, de uma nota só. É uma conduta comum tentar refletir em alguém que admiramos todas as qualidades que nós almejamos ter em nós mesmos, e de negar nesses ídolos qualquer possibilidade de falha - se o ídolo é falho, todos somos. Da mesma forma, é comum refletir em quem odiamos todos os defeitos que renegamos em nós mesmos, e de negar nesses vilões qualquer possibilidade de conduta decente.
Daí a decepção quando aqueles que nós elegemos como representantes da nossa própria moral cometem alguma espécie de deslize ou agem de uma maneira que nós, injustamente, é claro, consideramos indigna.
Estabelecemos os parâmetros para o outro, o que significa dizer que nos impomos sobre o outro - "é como eu penso que você deve pensar!" -, e esperamos que esses parâmetros sejam seguidos à risca. Afinal, o outro existe para nós.
Só que o outro não existe para nós. E nós não existimos para os outros.
Nós existimos nesse espaço de comunhão, em que diversas existências se coadunam, se chocam, se confrontam, se integram.
Exigir do outro uma conduta que nós definimos arbitrariamente é reduzir ao outro ao status de coisa, de objeto, de destinatário das nossas vontades. É negar ao outro a possibilidade de ser alguém.
Ídolos e vilões são a supersimplificação das relações humanas.
ídolos e vilões são personagens de um livro de coaching, em que tudo possui uma resposta mais fácil do que a realidade.
A supersimplificação é um caminho confortável, mas só na superfície. É possível acreditar que podemos resolver todos os nossos problemas com soluções básicas. É possível acreditar que podemos conquistar grandes objetivos com ações simples.
É assim que gurus convencem os outros que eles vão enriquecer na bolsa. É assim que gurus convencem os outros que eles vão enriquecer com criptomoeda. É assim que gurus convencem os outros que eles vão conquistar o corpo dos sonhos. É assim que gurus convencem os outros que eles vão conquistar a mulher/o homem que desejam.
O que os gurus têm em comum?
Fórmulas mágicas que funcionam apenas em mundo preto e branco.
Se você leu Grande Sertão, você sabe que o Riobaldo chamou o demo três vezes nas Veredas-Mortas para firmar o pacto e se tornar chefe - Quem é o chefe?. Se você não leu, eu estou te contando. O pacto é o caminho contrário da formação humana. O pacto é o corta-caminhos. O pacto é o atalho. O pacto é o acesso imediato.
O Fausto moderno é o guru que te oferece um mundo de alegrias por um precinho camarada. Antes a sua alma, agora uma porção de reais.
Riobaldo tentou superar a mistura do mundo pelo pacto demoníaco, mas a mistura do mundo é invencível. É disso que o mundo é feito, desse tecido cheio de remendos. O jagunço das letras vai encontrar seu próprio caminho ao se afastar do absolutismo para retomar a trajetória da inconclusão, com compadre Quelemém explicando o aspecto dual da busca pela sabedoria:
"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais".
Ao encarar o mundo despido de certezas absolutas, nós permitimos que nossos semelhantes se apresentem tal como são, que avancem e recuem, que acertem e que errem, longe das categorizações simplistas e heróis, de vilões, e na medida em que permitimos aos outros expressarem suas incongruências, nós damos a nós mesmos o direito de sermos quem nós somos.
Essa coisa complexa. Ora bonita, ora feia. Toda humana.
(menos o Bolsonaro, que esse é um filho da puta de um nome só) - gsc