Estava esperando o horário de uma consulta e passei em um sebo no Centro de São Paulo, onde encontrei O amante, de Marguerite Duras, por cinco reais. Comprei o livro.
Hoje, sentado em uma go coffee qualquer, estava lendo o livro enquanto tomava meu expresso superfaturado quando encontrei o seguinte trecho:
Olha para mim e diz: talvez você se liberte. Dia e noite, a idéia fixa. Não se trata de conseguir alguma coisa mas de sair de onde estamos.
A narradora não falava comigo, mas olhava para mim. Por muito tempo eu não tentei conseguir coisa alguma, mas apenas sair de onde eu estava, não importasse o quanto eu fingisse perseguir outra coisa senão a fuga em si.
Está na hora de parar de fugir.
Eu gostaria de ter conhecido o dinheiro mais tarde. Como todo mundo que conheceu o dinheiro cedo na vida, nosso encontro se deu pela falta. O dinheiro nunca se mostra mais claramente do que quando não há dinheiro algum.
Talvez eu estivesse na sexta ou sétima série quando a minha relação com a minha mãe atingiu seu pior ponto. Eu não sabia na época, porque eu, criança, culpava apenas a minha mãe, que o problema era outro, do qual a minha mãe — e a nossa relação — era um mero sintoma. Pressionada mês após mês pela falta de dinheiro, o seu gênio, já dado para explosões (quando tudo ia bem, de afeto e carinho; quando tudo ia mal, de intransigência e grosserias), controlava todas as suas emoções. As similaridades das nossas personalidades contribuíram para que nem eu, nem ela fossemos capazes de diminuir a tensão. E eu achava que aquilo tudo era injusto: era injusto que eu, uma criança, tivesse que lidar com aquilo. Que eu tivesse que saber que o dinheiro estava em falta. Mas depois, só depois eu entendi que sim, tudo aquilo era injusto. Injusto para mim, uma criança. Mas injusto também para a minha mãe, uma mulher adulta com dois filhos que, apesar de ter trabalhado a vida toda, encontrava-se a uma derrapada de não ter nada. Era injusto que eu tivesse que ceder, entender, aceitar o stress que dominava a minha mãe. Mas era injusto com ela ser dominada pelo stress e pelo medo e pela angústia. Era injusto com ela que seu gênio — nos bons dias, uma fonte inesgotável de alegria — se visse todo voltado para a tristeza.
Só mais tarde eu entendi que, na verdade, nada disso tinha a ver com justiça, um conceito fora da equação.
Foi assim que eu envelheci antes da hora, que o tempo, para mim, passou mais rápido e eu fiquei sempre temporalmente deslocado, um passo a frente de mim mesmo. Nós, eu e minha mãe, superamos a dor que cresceu entre a gente e nossas similaridades das nossas personalidades enfim nos aproximaram, porque eu, já não mais uma criança, podia compreender a minha mãe, e ela podia compreender a mim. Mas o tempo que eu perdi — o tempo em que eu envelheci antes da hora — se revelou irrecuperável. E então eu passei, ainda que sem saber, a planejar a minha fuga.
Quando decidi, aos dezesseis anos, que iria prestar a prova da Aeronáutica e ir para a EPCAr, em Barbacena, a mais de quinhentos quilômetros de Boituva, para viver em regime de internato por três anos, eu decidi, em um primeiro nível, porque eu estava convencido de que aquele era o meu futuro: um piloto militar. Eu aspirava a vida que eu inventei para mim mesmo. Só que aquele futuro foi construído, depois eu percebi, em um segundo nível, mais profundo, menos acessível: eu queria sair de onde eu estava.
Não se trata de conseguir alguma coisa mas de sair de onde estamos.
Ao envelhecer antes da hora, fiquei fora de tom, perdi o ritmo da música. Tudo ao meu redor parecia antes. Boituva parecia atrasada e eu, sempre a frente, também estava atrasado, porque nunca estava no lugar certo, na hora certa. Eu queria ir para outro lugar, distante, diferente, impossível. Um lugar em que eu ainda não existia e assim eu poderia me criar, um lugar em que o tempo ainda não sabia quem eu era, então eu poderia me adequar, entrar na dança.
Eu não sabia do que eu estava fugindo, mas apenas que precisava fugir.
Então eu fugi. Passei, na segunda tentativa, na prova da EPCAr. Eu e minha mãe comemoramos. Operei a visão do olho direito para passar no exame médico e ela se endividou para pagar a cirurgia, mas aqui o seu gênio estava no seu estado de alegria — nós nos compreendíamos. Ela nunca perguntou por qual razão eu queria ser militar. Ela nunca questionou a minha decisão. Ela perguntou se era aquilo que eu queria fazer e, quando eu disse sim, então não havia o que ser discutido. Cresci antes da hora, envelheci antes do tempo, e nós nos tornamos iguais, eu e a minha mãe: ela sabia que a minha vida cabia a mim. Fui para a EPCAr.
E quis fugir outra vez.
Já escrevi antes sobre a EPCAr e sobre o militarismo e etc. O que eu inventei como futuro e o que eu encontrei eram coisas diferentes. Tive medo. Senti desconforto. Sem falar para ninguém, quis voltar para casa. Voltar para ficar, não vez ou outra, aos finais de semana. Quis voltar para casa e lá permanecer, seguro, protegido.
Porém, a cada vez que eu voltava, menos eu reconhecia a minha própria casa. A distância entre mim e o lugar em que eu cresci agora era tão grande que era feito olhar o horizonte: sabemos que há alguma coisa, mas não somos capazes de distinguir do que se trata. É apenas uma linha. É apenas o traçado. É apenas sombra. E essa distância não poderia ser percorrida nem por mim, nem por ninguém. Eu havia fugido e o lugar de onde eu fugi deixou de existir.
Três anos depois, formado na EPCAr, eu estava certo de que não seguiria na Aeronáutica. Estava certo, mas não oficializei essa decisão. Prestei vestibular, fiz a prova do concurso do Tribunal, mas não disse: não seguirei. Tive medo de enunciar as palavras e fazê-las magia e alterar de vez a realidade. Esperei para ver, segurei as minhas cartas. Mas a minha mãe viu o que não foi dito e num certo dia, entre a formatura da EPCAr e a data de apresentação na Academia da Força Aérea, ela me perguntou sem nenhum resquício de censura:
— Você não quer continuar, quer?
E eu disse que não. E ela perguntou o que eu queria fazer. E eu disse a verdade: que eu não sabia. Que esperaria o resultado do vestibular. E ela disse:
— Tudo bem, o que você decidir, está decidido.
E lendo essas palavras parece haver na construção da frase uma inequívoca desaprovação. Mas essa aparência é, sem dúvida, enganosa. Não havia desaprovação. Era um voto de confiança: o que você decidir, está decidido, e a mais ninguém cabe essa decisão.
Minha terceira fuga.
Fui aprovado só na quarta chamada para a Faculdade de Direito da USP Ribeirão. Quando peguei o ônibus de Campinas para Ribeirão Preto, tive medo, um medo diferente daquele que senti na EPCAr, mas ainda assim medo, que tem várias faces, várias gradações. Outra chance de me inventar, outra chance de me perder.
E esse medo foi se dissipando a medida em que deixei a invenção tomar a sua própria forma. O que você decidir, está decidido. Durante um ano e meio eu parecia, enfim, ter acertado o passo do tempo — aqui, agora. Até a ligação que me tirou do tempo outra vez.
Eu me mudei para São Paulo menos de dois meses depois da morte da minha mãe. Eu me mudei para um pequeno apartamento no centro da cidade para começar um novo trabalho. Um pequeno apartamento vazio no centro de uma cidade que eu não conhecia para começar um novo trabalho que eu não sabia como exercer.
O que eu queria era ir embora. Ir embora para qualquer lugar. Ir embora e deixar para trás tudo aquilo — as memórias, a tristeza, o medo. O que eu queria era criar uma outra vida, uma vida impossível, uma vida em que eu fosse exatamente quem eu era.
O que você decidir, está decidido.
Não parecia justo. Que eu, um jovem adulto, tivesse que lidar com isso. Lidar com a morte precoce da minha mãe. Lidar com as obrigações de uma vida inteira pela frente.
Não parecia justo.
Você percebe o padrão?
Injusto, injusto, injusto.
Você percebe a imagem que se forma?
Aqui está ruim, mas lá — qualquer lugar — não vai estar. Basta você fugir.
Foi assim que eu envelheci antes da hora pela segunda vez. A segunda vez em que enganei o tempo e passei a sua frente.
Não se trata de conseguir alguma coisa mas de sair de onde estamos.
Nada disso tem a ver com justiça, um conceito fora da equação. Talvez um dia você se liberte, sim. Talvez esse dia tenha chegado. O dia em que eu me libertei da falsa impressão de que o futuro está no ponto seguinte, no ponto que eu ainda não atingi, no lugar para onde eu ainda não fui.
Na minha próxima fuga.
Eu enganei o tempo duas vezes. Eu já estou no futuro. Toda fuga seria nada mais, nada menos do que correr em direção ao passado.
Decidi e está decidido: não sairei de onde estou, porque onde estou nunca é o mesmo lugar.
Eu já queimei muitas sinapses tentando entender minha agonia de estar sempre em fuga e parte da minha relação com minha mãe e nossa condição financeira. Hoje encontrei o teu texto. É nesses encontros que entendo a limitação dos pronomes possessivos, o reconforto estranho de descobrir o sentimento no sentimento do outro. Não sei se cabe um obrigado, então deixo um abraço. 💙