Terra Prometida
Ficções / Muito cedo ele entendeu que, em dado momento, precisaria partir.
Muito cedo ele entendeu que, em dado momento, precisaria partir. Tão cedo que não era capaz de precisar quando, cedo no tempo em que as memórias ainda se embaralham, ainda não sabem se formar com nitidez, vêm e vão em clarões. O que entendia era isso: precisaria partir. Precisaria partir, em dado momento, para algo melhor, a promessa que havia sido feita e que ele guardava perto de seu coração. A promessa com a qual ele persistia: vai ser melhor, e assim se mantinha atento, vigilante, esperançoso pelo dia seguinte, sempre mais próximo do momento em que partiria, um dia sem definição prévia, mas que, por definição, aproximava-se a cada vez que o sol se punha e voltava a aparecer no céu no dia seguinte, uma dança que a ele nunca deixava de parecer impressionante.
Sob o signo dessa certeza e dessa promessa, preparou-se para a partida. Enfrentou cada tristeza com a força de quem sabe que há algo por vir, que aquele instante não poderia, é claro, durar para sempre: ele não permaneceria naquele lugar. Vai ser melhor. Ao caminhar pelas ruas em que cresceu, pensava nas ruas que ainda não conhecia e nas quais poderia crescer mais. Ao olhar as paredes que já havia tocado, pensava nas paredes que jamais tocou e que poderia erguer, ele próprio, com as mãos, em outro lugar. A mãe olhava para ele desde pequeno e já sentia saudade: o menino estava lá, mas, na verdade, já estava partindo. Nasceu em movimento, mise en scéne de uma despedida contínua. Ele olhava para a mãe com carinho: voltaria para contar o que viu lá fora, e depois partiria outra vez. Não poderia ficar. Nunca poderia ficar. Se ficava, agora, era não ficando, permanência precária. A primeira palavra que aprendeu, dizia a mãe, foi Adeus. Mentira, claro, uma dramatização de efeitos, a primeira palavra foi, como era de se esperar, Mamãe, mas o tom era mesmo de adeus. A mãe percebe essas coisas. Outras pessoas não. O pai não. Mas a mãe percebe a entonação. O pai se ressentia: quer partir para quê? Aqui tem tudo. Aqui tem eu, sua mãe, sua irmã. Aqui tem tudo, partir para quê? Ele gostaria de explicar para o pai, mas não era possível. Primeiro, porque ele não sabia como explicar. Segundo, porque o pai não sabia como entender. Aqui tem tudo, eu, sua mãe, sua irmã, a loja que vai ser sua. Nunca seria dele, nunca foi dele: a ele não pertencia aquela vida. O pai se ressentia, como poderia não se ressentir? Um filho que nasce querendo partir. O pai não conseguia entender, não sabia como, o pai sempre quis ficar, é uma questão que precede.
Pediu desculpas ao pai, porque sentia muito, mesmo. Não por partir, mas por não explicar e não ter como explicar. Beijou o rosto da mãe e engoliu as lágrimas. Disse Adeus outra vez. Abraçou a irmã. Então é isso, ele disse. O pai não respondeu. Vai com Deus, meu filho, a mãe disse, e ele respondeu Amém.
Era preciso partir. Entendeu muito cedo. Precisava partir e a hora havia chegado.
Partiu.
Caminhou rumo ao seu destino, que se fazia no caminho. Traçou a rota e a rota seguiu. Era preciso partir, porque era preciso chegar. A origem ficava cada vez mais distante, perdia-se no horizonte. Ele caminhava. Caminhou até o destino sob a promessa de que lá a vida seria melhor - a vida é sempre melhor para lá, onde ainda não se está. As pernas cansadas e os pés machucados sustentavam a dor de quem nasce para partir.
Precisou fazer uma parada e se sentou a mesa de uma vendinha. Olhou na carteira e tinha pouco. Sem que ele pedisse, o senhor de trás do balcão trouxe uma água gelada e um misto-quente. Quanto fica, meu amigo?, ele perguntou, com a nota na mão. O senhor não olhou para a nota e disse: É da casa, camarada. Ficou comovido. O senhor tocou suas costas com as mãos e sorriu. Vai para onde? Ele indicou com a cabeça: naquela direção. E ainda vai longe?, perguntou o senhor. Só até eu chegar. O senhor balançou a cabeça, concordando. E chegando, o que vai fazer? Ele tomou um gole da água, que fez um arrepio subir pela suas costas, antes de responder. Primeiro, preciso chegar, e aí vou saber. É perigoso caminhar só para partir, o senhor disse, mas não para ele, para o vento. Mas às vezes não é possível fazer outra coisa, completou. Fique à vontade, disse o senhor, voltando para trás do balcão e sumindo dentro da venda.
É perigoso caminhar só para partir, mas às vezes não é possível fazer outra coisa.
Ele terminou de tomar a água e de comer o misto-quente. Deixou a nota sobre a mesa, sob o copo. Olhou para dentro da vendinha para se despedir, mas não encontrou o senhor. Levantou-se e voltou a caminhar.
Já não faltava tanto assim. Mais dois dias e duas noites, subiu em três ônibus com o dinheiro que estava guardado, escondido em um bolso secreto que a mãe costurou em sua mochila. Junto ao dinheiro, um bilhete da irmã: não demora. Sem estar assinado, sem mais nada, mas ele sabia que era da irmã. Conhecia aquela caligrafia. Trouxe o bilhete para perto do peito e lá o manteve até o ônibus parar.
O letreiro luminoso não deixava dúvida: havia chegado.
Havia partido, havia caminhado e agora havia chegado.
E lá a vida começava outra vez. Lá, que não era mais onde não se estava, mas onde havia se chegado. E onde se chega nunca é tão bom quanto o lugar para onde se vai, o mise en scène da eterna partida. A fantasmagoria do futuro, a imobilidade do presente, a nostalgia do passado. Vai ser melhor, era a promessa do tempo que ainda viria, sempre a frente. Não tardou até sentir saudade de casa, onde a vida não era boa, mas familiar. Era essa a sua certeza, sempre foi: de que precisaria partir. Vai ser melhor, no lugar que ainda está por vir. Às vezes não é possível fazer outra coisa. Sonhou com o senhor da vendinha mais de uma vez. Na terceira, decidiu que havia chegado a hora.
Partiu outra vez, voltou a caminhar. Quando chegasse em casa, contaria o que tinha visto, pois mantinha suas promessas. Mas logo partiria de novo, porque quando ao de lá sair, aquela havia deixado de ser a sua casa, e o lugar para onde ele estava voltando era, agora, um lugar desconhecido. As ruas, as paredes, tudo novo, tudo o mesmo.
Ele, outro. E outro. E outro, outra vez.