Devia ter por volta dos meus 10 anos quando entrei pela primeira vez, com o meu pai, pelo portãozinho do que parecia ser uma garagem. Era mais — para mim, foi muito: conhecíamos o lugar como Cidona, nomeado a partir da proprietária, a Dona Cida. A Cidona era uma lan-house de videogames: por alguns reais, você podia jogar por uma, duas ou mais horas em algum dos aparelhos disponíveis. Na época, meia dúzia de Playstations 2.
Desde essa primeira vez, descobri a felicidade simplificada: dois reais a hora, por 10 reais você poderia jogar durante cinco horas. A matemática da alegria da pré-adolescência era deliciosamente simples.
Desde essa primeira vez, voltei incontáveis vezes a Cidona. Dois reais no balcão, escolhe o jogo na prateleira, às vezes um Winning Eleven para jogar com o amigo, às vezes um Need for Speed pela trilha sonora e pela possibilidade de deixar o carro todo emperequitado, e, muitas outras, o bom e velho GTA - III ou Vice City -, acompanhado da lista de códigos que ficava sob poder da Cidona ou do seu marido. Basta apontar para o jogo na prateleira, pegar o DVD, colocar no videogame e pronto, estava equacionada a felicidade.
A vida era bem menor, em termos de medida — podia ser quantificada desse jeito, por horas jogadas na Cidona, pelas horas na casa do pai no final de semana, pela duração de cada aula até o recreio. Eu era menor. E tudo parecia enorme ao meu redor.
Em um desses finais de semana, meu pai me deu uma nota de 10 para ir com um amigo até a Cidona e lá permanecer a tarde inteira, jogando sem parar. Mas esse não era um plano só meu. Chegar na Cidona era fácil, o mundo era um bairro: descia na primeira a direita na rua do meu pai, na esquina em que havia uma pequena mercearia, e depois virava na próxima a direita outra vez. Não dava cinco minutos andando. Saí pela porta da casa do meu pai, desci na primeira a direita, virei na próxima a direita outra vez e entrei na Cidona.
Todos os videogames estavam ocupados.
Final de semana a concorrência era especialmente elevada, era preciso chegar cedo para conseguir lugar. Perguntei para o marido da Cidona se algum ia liberar em breve e ele conferiu num caderno, com os horários escritos a mão:
O próximo só daqui uma hora e meia, antes já tem gente esperando.
Dois rapazinhos me olhavam enquanto o marido da Cidona respondia, e entendi que eram eles quem esperavam pelo próximo videogame livre. Uma hora e meia era muito tempo.
Com dez reais no bolso, meu amigo e eu não sabíamos o que fazer. Poderíamos voltar para a casa do meu pai, arranjar algo para nos ocupar. Podíamos ficar pela rua. Ou então.
Em cima do balcão, havia um pote enorme de paçoca rolha, vendida por unidade. R$ 0,20 a unidade.
Olhei o pote. Procurei no bolso e senti a nota entre os meus dedos.
10 reais em paçoca.
Puxei a nota do bolso e entreguei para o marido da Cidona: vou querer em paçoca.
Quanto?
Tudo, eu disse.
Ele ficou me encarando, com os olhinhos por trás dos óculos.
Tudo?
Tudo.
Meu amigo riu.
Os dois rapazinhos que esperavam riram.
O marido da Cidona se virou e procurou algo atrás do balcão. Pegou um pote fechado, com 50 paçocas, e me entregou.
10 reais em paçoca.
Agradeci, peguei o pote e saí para a rua.
Meu amigo e eu nos sentamos na guia, abrimos o pote e começamos a comer. Logo ficou claro que 50 paçocas era muita paçoca para duas crianças, mas comíamos sem parar. Chegando na metade, nem eu, nem ele aguentávamos mais.
Chamei os rapazinhos que esperavam um videogame liberar e ofereci paçoca. Eles aceitaram. Pegaram umas cinco, cada. Pega mais, ofereci. Pegaram mais duas, cada.
Ainda tinha uma porção de paçocas no pote. Comemos juntos ali, na guia, 10 reais em paçoca. Que também dava para cinco horas de jogo na Cidona. 10 reais dava para muita coisa.
O tempo passou, eles foram chamados pelo marido da Cidona e entraram para jogar. Nos convidaram para revezar, mas eu tive que recusar. Não por falta de vontade, mas porque comer dezenas de paçocas destruiu o meu estômago e eu precisava voltar para a casa do meu pai com urgência.
Sorte que o mundo era bem menor do que é hoje.
Hoje, o mundo é outro, grande, vasto, desconhecido. A Cidona não existe mais, fechou quando eu ainda era criança após diversos furtos durante a madrugada. O portão continua o mesmo, e da última vez que passei na frente de onde um dia muita felicidade se produziu por dois reais a hora não havia nada no lugar, apenas o portão fechado, cadeiras para dentro, um cartaz de título de capitalização. A casa onde meu pai morava tem outra fachada, a mercearia deu lugar a uma loja de cosméticos. 10 reais já não compram 50 paçocas. Compram muito pouco.
Hoje, eu sou outro, grande, vasto, desconhecido. Porém, por 30 reais eu compro um pote de paçoca no mercado, com 25 unidades, e invariavelmente eu como o pote inteiro de uma vez, com o mesmo resultado catastrófico para o meu estômago. É preciso ser fiel às tradições.
Crônica deliciosa. Mais que paçoca.