Tem quem corre por lazer
Tem quem corre pra viver
Tem quem corre perigo
Há uma atraente simplicidade que é inerente ao ato de correr. Um passo depois do outro, rapidamente1. Tão simples e eficiente é o ato de correr que ele faz parte de praticamente todas as outras atividades físicas que praticamos. Estamos sempre correndo — quando estamos atrasados, quando queremos chegar logo, quando queremos deixar algo para trás. Até parece que fomos feitos para correr.
Quando criança, eu corria muito de um lado para o outro. No pega-pega, correr rápido era uma habilidade invejável — nunca fui o mais rápido, mas também não era o mais lento, e no pega-pega estar entre os dois já é suficiente para um bom desempenho. No esconde-esconde, a corrida era fundamental na hora de sair do esconderijo e ir até o ponto de partida para se salvar — ou, então, para, uma vez flagrado o escondido, ser mais rápido do que ele. Para jogar bola é preciso correr; para jogar basquete é preciso correr.
Aprendemos a andar e logo começamos a correr, sem pensarmos muito na situação.
Não sei precisar exatamente quando comecei a correr de maneira consciente — isto é, pensando na corrida como uma ação intencional. Minha memória mais antiga e clara é do ano anterior ao meu ingresso na Escola Preparatória de Cadetes-do-Ar (EPCAr). Uma vez aprovado na prova, era necessário ser aprovado nos exames médico, psicológico e físico.
O exame físico consistia em três exercícios, no ano em que eu estava fazendo a prova: flexão, abdominal e corrida.
Deveríamos correr 2400m em 12 minutos para sermos aprovados.
Para os corredores de plantão, é um pace de 5min/km. Eu sequer sabia o que era pace naquela época, só sabia que eu precisava correr 2400m em 12 minutos. Era essa distância e esse tempo que me separavam daquilo que, então, representava o meu sonho.
Para treinar, eu corria na pista de caminhada que ficava ao lado da minha casa em Boituva, conhecida como caminhódromo. A pista tem uns 1300m, então eu dava de duas a três voltas por dia, o mais rápido que eu conseguia.
A corrida era o meio para o fim desejado. Durante a corrida, não há mais o que se fazer além de correr — a única forma de alcançar o número desejado é correndo. A simplicidade é atraente e, por vezes, angustiante. Nos primeiros passos você sabe que está longe do fim e logo quer parar. É preciso superar a barreira inicial e continuar colocando um pé depois do outro. Para me distrair do tanto que ainda faltava, eu imaginava o meu futuro: se eu concluísse aquela corrida, se eu concluísse aquele treino, em um ano eu estaria correndo outra vez, mas fardado, como aluno da EPCAr. Eu imaginava e idealizava e continuava colocando um pé depois do outro.
Fiz o teste físico. Corri os 2400m dentro dos 12 minutos e me tornei aluno da EPCAr. Nos três anos seguintes, de 2012 até 2014, corri quase todos os dias — tudo que fazíamos na EPCAr envolvia correr, seja para ir de um lugar para o outro, seja só para correr. Corríamos sozinhos, corríamos em grupo. Corríamos nos testes físicos trimestrais (agora, não eram só 2400m em 12 minutos — para tirar 10 no TACF — teste de avaliação de condicionamento físico, precisávamos correr 3km em 12 minutos; 4min/km de pace). Corríamos na educação física. Corríamos o tempo todo.
Eu e a corrida estávamos habituados um ao outro. Não pensávamos muito um no outro, mas estávamos habituados como qualquer elemento da rotina.
Em 2015, eu me desliguei da Aeronáutica.
Em 2024, eu corri mais do que em qualquer outro ano da minha vida.
Muita gente mais competente do que eu já escreveu sobre corrida. Há uma tendência entre escritores que correm em traçar paralelos entre a corrida e a escrita. Eu já fiz isso. O Murakami já fez isso2. E também existem diversos paralelos por aí entre a corrida e a vida, alguns bons, como o livro Correr, do Drauzio Varella, e muitos outros ruins, como, bom, quase tudo que busca pinçar elementos reflexivos e filosóficos a partir de pequenos atos da vida cotidiana.
Não pretendo fazer isso aqui. Pretendo, apenas, falar de como a minha relação com a corrida aconteceu.
A atraente simplicidade torna a corrida maleável — uma espécie de elemento unitário, simples, básico, que pode ser encaixado, remendado, repensado e combinado infinitamente. O que é preciso para começar a correr? Um par de pernas e uma rua. Ou uma calçada. Ou uma trilha. Pernas e espaço. Pernas e espaço e a superação da resistência inicial, para sair do estado de inércia. Pronto: o elemento básico.
Claro que, com isso, faz-se muitas outras coisas, com as quais surgem complicações: existem tênis especiais para corrida, meias para corrida, shorts para corrida, camisetas para corrida, óculos para corrida, bonés para corrida. A simplicidade se torna complexa e mais cara. A corrida é, como tudo que está inserido na atividade humana contemporânea, um produto rentável, constantemente apropriado e reinventado por marcas e corporações e Stravas e Garmins e afins, mas a essência continua a mesma: um pé depois do outro, rapidamente, ou o mais rápido possível. Todas essas coisas incrementam a corrida enquanto atividade esportiva ou de rendimento, mas a corrida permanece a mesma. Eu tenho um tênis para corrida, meias para corrida, shorts para corrida, camiseta para corrida, óculos para corrida, boné para corrida; eu salvo minhas atividades no Strava a partir do meu Garmin. Eu sei que estou inserido dentro desta lógica de complexificação e commoditização da corrida, e que muito do que adquiro e consumo no universo da corrida é desnecessário e excessivo. Parte destes produtos facilitam, para mim, a corrida e me auxiliam em permanecer correndo. Mas eles não são indispensáveis: a corrida continua a mesma, intrinsicamente simples em si.
E foi em busca dessa simplicidade que eu passei a correr por correr. Não mais para alguma coisa (para o teste físico, para o basquete, para perder peso), mas por. Correr por correr. A corrida em si mesma. A corrida como meio e como fim.
Durante a pandemia, após meses dentro de casa improvisando a sala do minúsculo apartamento para fazer treinos caseiros, eu saía correr de noite, sozinho, de máscara, no Vale do Anhangabaú. Era o meu único contato com o mundo exterior: a cidade vazia, o concreto, as viaturas passando. Eu corria até os meus pulmões explodirem e minhas pernas queimaram. Aí, voltava para casa, a máscara ensopada, para o meu isolamento. Tem quem corre por lazer. Tem quem corre pra viver. Com a melhora dos números da pandemia, voltei a treinar basquete, voltei para a academia, e a corrida ficou em segundo plano, uma atividade esporádica para manter a forma física.
Em fevereiro de 2023, um amigo me convidou para participar com ele de uma corrida de rua em Bauru. Uma corrida pequena, de 5km. Eu não me senti intimidado pela distância; já tinha corrido 5km antes, mas não em uma prova. Nas semanas anteriores, corri algumas vezes no Vale do Anhangabaú, desviando de pedestres e respirando a fumaça de São Paulo, marcando o tempo no meu G Shock. Em Bauru, largamos juntos e, em seguida, eu acelerei o ritmo: queria fazer o meu melhor tempo possível. Sem Garmin, sem Strava, sem nada, eu corri usando um Nike genérico, a camiseta da organização da prova e um óculos escuro qualquer para me proteger do sol. Não lembro em quanto tempo fiz os 5km — um pouco abaixo de 25 minutos. Na chegada, eu estava exausto e contente. Havia me divertido. Mas ainda não começaria a correr com consistência.
Levou mais de um ano para eu participar de outra prova de corrida de rua. O mesmo amigo de Bauru me disse que estaria em São Paulo para correr uma nova prova de 5km e me convidou para ir com ele. Aceitei. Outra vez, sem qualquer meta ou objetivo, eu corri algumas vezes nas semanas anteriores entre os prédios do Centro de São Paulo e cheguei na prova sem maiores perspectivas.
A manhã estava chuvosa e antes da largada a chuva apertou. Nós decidimos correr mesmo assim. Saímos embaixo de muita água; acompanhei o ritmo do meu amigo e de um amigo dele, que nunca tinha corrido antes, até metade do trajeto; dali, acelerei e fui até o final no meu próprio ritmo. Ensopado, atravessei a linha de chegada, pausei o cronômetro e recuperei o fôlego. Da mesma forma que havia acontecido da primeira vez, eu estava exausto e contente. Pensei: por que eu não faço isso mais vezes? Por que eu não faço isso direito?
Ao meu redor, cada vez mais gente parecia começar a correr. Conhecidos enchiam o Instagram de fotos de corrida. Conteúdo de corrida inundava meu YouTube. A Marina decidiu começar a treinar com uma assessoria e, com isso, eu também passei a correr com o objetivo apenas de correr. Em maio de 2024 teria uma corrida em Araras, da Associação da cidade, em que a Marina correria pela primeira vez, e eu me inscrevi nos 10km — uma distância inédita para mim.
Confiante em minha capacidade e no meu absoluto desconhecimento, como todo idiota é, passei a treinar por conta própria. Comprei um relógio chinês baratinho, que prometia registrar meu treino, instalei o Strava, vinculei o relógio, e fui correr. Um passo depois do outro. De duas a três vezes por semana, eu ia para a rua e corria. Às vezes 5km, às vezes 3km, até me sentir seguro para correr os 10km.
Os números desses treinos improvisados não impressionavam a ninguém, mas me davam a sensação de que eu estava fazendo alguma coisa. De que eu estava correndo.
Há alguns anos, escrevi sobre como eu não acredito em motivação3. Depois de ler Murakami, de começar e parar diversas atividades, de me frustrar com a falta de resultados, de utilizar a não tentativa como desculpa para a ausência de sucesso, passei a cultivar a ideia de que a motivação é uma ótima catapulta — mas o seu efeito é limitado. Eventualmente, você entra em queda livre. E a única coisa que evita que você se espatife no chão é o ritmo: é continuar fazendo quando a motivação acaba (e, pode acreditar, ela vai acabar, cedo ou tarde); é continuar indo quando você não quer mais ir; é continuar treinando quando você está de saco cheio de treinar. Ou, nas palavras do Murakami: De qualquer forma, é algo que eu tenho que fazer.
É um compromisso consigo mesmo — uma rejeição da satisfação imediata da desistência para uma satisfação futura, uma satisfação completa, da realização (não do sucesso, cuja medida é sempre dúbia e volátil — da realização, de ter feito). De qualquer forma, é algo que eu tenho que fazer.
Com isso em mente, eu corria.
E de treino em treino, um dia eu senti a minha panturrilha fisgar. A minha intenção naquele dia era, enfim, correr 10km em treino. Estava no oitavo quilômetro. Tentei seguir em frente, mas tive que parar. A fisgada ficava pior a cada passada.
Depois de 29 anos, dos quais a maior parte eu dediquei a praticar alguma atividade física, tive minha primeira lesão muscular. Fiquei preocupado que pudesse ser algo mais sério e tentei me convencer de que era apenas uma contratura, um efeito do aumento repentino de volume, algo que a minha expertise online havia me dito que poderia acontecer.
Munido de muito tempo de internet, procurei os conteúdos dos criadores mais confiáveis que eu acompanho e segui algumas recomendações de fortalecimento para a panturrilha e para a perna. Em uma semana, voltei a correr mais leve. Faltava menos de um mês para a corrida da Associação de Araras. A panturrilha ainda incomodava, principalmente depois de alguns quilômetros. Eu não conseguiria fazer os 10km antes da prova.
Segui essa rotina até o dia da corrida. Comprei um tênis novo, de placa de carbono, para satisfazer minha ansiedade. Os tênis de placa são, comprovadamente, eficazes (ou eficientes?) no rendimento de corrida, potencializando a transferência de força da perna para o chão4. O que o tênis de placa não faz é milagre. Mas eu, um confessado ateu, precisava de um amuleto para chamar de meu.
O trajeto da corrida da Associação para os 10km tinha uma considerável inclinação, que se estendia por boa parte do percurso. Larguei forte e fiz os primeiros 3 ou 4km bem e rápido, sem sentir nada. Minha meta era correr para menos de 50 minutos, ou seja, com um pace abaixo de 5min/km. No início, estava bem abaixo dessa meta. Até que a primeira inclinação começou. Assim que pisei no início da subida, senti a minha panturrilha fisgar outra vez. Um outro corredor, que eu percebi estar atrás de mim durante o trajeto inicial da prova, notou que eu estava com dor e que estava diminuindo o ritmo, então tomou a minha frente e perguntou se eu queria que ele puxasse, ou seja, que ele ditasse o ritmo para nós dois. Ele se ofereceu porque, até ali, eu estava lhe puxando comigo.
A corrida é, essencialmente, um esporte individual. Você corre sozinho. Você corre com e por você. Faz parte da sua inerente simplicidade. Você só precisa de você para correr. No entanto, a corrida se desenvolve melhor quando você está acompanhado pelos outros. Quando eu estava acompanhado pelo meu amigo em Bauru e em São Paulo, eu me senti melhor correndo. Quando o corredor desconhecido se ofereceu para me puxar, eu me senti motivado. Mais tarde, eu perceberia algo que eu já sabia — que o treino em conjunto é sempre mais agradável. Durante os anos da EPCAr, as corridas em esquadrão eram sempre suaves, fisicamente falando; claro, o ritmo era mais lento, porque era puxado sempre pelo corredor mais fraco, para que ninguém ficasse para trás. Porém, mesmo as corridas que duravam muito tempo pareciam rápidas, não exaustivas.
Eu recusei a oferta, porque eu sabia que não conseguiria acompanhar, mas agradeci a gentileza. Continuei correndo e, olhando no relógio, vi meu pace subir cada vez mais. Entre olhar para o relógio e para a rua, pisei em um buraco, torcendo o pé da panturrilha lesionada. Precisei de uns metros saltitando até conseguir pisar direito no chão. Faltava um pouco menos da metade da prova. Com o corpo quente, a dor foi, aos poucos, passando, e quando a inclinação acabou consegui retomar o ritmo forte. Faltando 500m, dei um tiro e passei pela linha de chegada com 49 minutos e 56 segundos.
Ficaram 4 segundos pro santo.
Consegui bater a minha meta.
O GPS do relógio chinês, porém, marcou apenas 9.91km. Tive a minha primeira experiência com o famoso Strava Tax. Não importava: fiz os meus primeiros 10km, bati o tempo que estabeleci como meta e a Marina terminou sua primeira corrida na vida.
Foi um bom dia.
Na manhã seguinte, não consegui descer a escada com a panturrilha travada.
Depois da prova da Associação, ficou claro que, se eu quisesse continuar correndo com alguma seriedade e constância, em precisaria seguir orientação de gente capacitada. Estabeleci como nova meta a Meia Maratona de Viracopos, que aconteceria em 21 de julho. Eu tinha dois meses para me preparar.
Uma Meia Maratona tem 21.097,50 metros, ou 21.1km, o que é, como o nome já diz, metade de uma Maratona, cuja distância é de 42km.
Eram 11.1km a mais do que eu havia feito com muito custo. Eu ainda estava morando em São Paulo, estava me aproximando da reta final do mestrado, então eu precisava de alguma flexibilidade nos treinos. Decidi comprar o acesso ao Viva a Corrida5, da
, que produz um excelente conteúdo sobre corrida na internet. No Viva a Corrida, estão disponíveis planilhas de treino de acordo com o seu objetivo. Selecionei a opção de Meia Maratona, e o ciclo era de três meses. Eu teria que me virar com um mês a menos.Segui, da melhor forma possível, a rotina da planilha, alternando as corridas com o fortalecimento na academia, os treinos de jiu-jitsu, a escrita da dissertação e o trabalho. Ao contrário do meu treino inventado, a planilha seguia uma lógica: cada semana era dividida em três treinos, sendo dois treinos intervalados (ou fartleks), e um treino longo. O dinamismo me ajudou a manter o ritmo e a constância, e ter um cronograma específico foi útil para eu apenas focar em fazer o que estava escrito.
Fiz os treinos de tiro de velocidade. Fiz os treinos longos. Senti fadiga, fui na massagem, fiz fortalecimento. Treinei em São Paulo, entre os pedestres; treinei em Campinas; treinei em Araras. Troquei meu tênis de rodagem6 e comprei o Corre 3, da Olympikus. Achei um Garmin Forerunner 55 usado na OLX. Ao fim dos dois meses, eu me sentia pronto. Ao menos, mais pronto do que eu estava antes. Havia corrido centenas de quilômetros nesse intervalo, com dezenas de treinos feitos.
Agora, era só correr. Algo que eu tenho feito desde criança. Algo que eu sempre fiz.
Não pode ser tão difícil — um pé depois do outro. Igual escrever, uma palavra depois da outra.
O dia da prova estava bom, nem muito quente, nem muito frio. Os primeiros 8 ou 9km do percurso eram excelentes — saindo do estacionamento do aeroporto de Viracopos, entrávamos na rua e seguíamos pelo asfalto, com pouca inclinação. Corri bem e até exagerei no pace, fazendo o 4ºkm para 4:26, com a ajuda da descida. Nos 5km, o Garmin me avisou que eu tinha batido meu RP7. Não é o ideal bater RP em segmentos de uma corrida longa como uma Meia Maratona. Do 9ºkm em diante, a prova ficou muito difícil. Entramos em uma pista de cascalho, que circunda o aeroporto, com infinitas subidas e descidas curtas e desagradáveis. 10km, novo alerta de RP no Garmin. Eu sabia que precisava diminuir o ritmo se quisesse terminar a prova, e eu sabia que seria obrigado a diminuir por causa das condições do trajeto. O cascalho, além de castigar as pernas na troca de energia, fazia subir uma terrível nuvem de poeira que, junto ao sol e ao suor, me deixou totalmente cego. Precisei despejar um copo de água inteiro na cabeça e no rosto para voltar a enxergar. Parei de olhar o relógio, porque estava ficando ansioso. A minha frente, vi gente que tinha largado bem e sumido no horizonte quebrando e andando. Tive medo de quebrar, também. Um corredor, que largou na ponta do pelotão, estava sentado na beira da estrada, balançando a cabeça. Fui ultrapassando várias outras pessoas, sentindo a fadiga me consumir. Em algum ponto, parei de pensar. Não tenho lembranças de boa parte do trajeto. A cabeça sempre quebra antes do que o corpo. O desafio é se manter em movimento — motivação está na cabeça, ritmo está no corpo. O desafio é suportar o desconforto até que ele se torne tolerável — ou que se torne insuperável, e, neste caso, não há o que se fazer. Para continuar em movimento, eu desliguei a minha mente. Um pé depois do outro. Pausei a música no fone e foquei no som do Corre 3 sobre o cascalho. Um depois do outro, ritmado. Observando exclusivamente o som dos meus passos e o caminho imediatamente a minha frente, eu segui em frente. Só tenho lembranças a partir da hora em que estava, de novo, no asfalto — a partir do 16ºkm, mais ou menos. Entrei em um estado de flow que eu só tinha experimentado antes durante a escrita. Agora faltava pouco, 5km. Essa é a forma com a qual eu lido com corridas longas — dividindo em partes cada vez menores. Fez 1/3? Só faltam 2/3. Fez metade? Nunca faltou menos. Só 5km? Você faz isso todo treino de rodagem leve. É uma adaptação da minha regra dos três dias, outra invenção pessoal para enfrentar períodos de mudança brusca:
Preciso aguentar só três dias.
Essa regra é uma espécie de magia autorrealizável. Em três dias, geralmente, eu me sentia um pouco melhor do que antes — não bem, não ajustado, não adaptado inteiramente, mas um pouco melhor. Então eu repetia para mim:
Agora só preciso aguentar mais três dias.
A lógica por trás da regra dos três dias é simples: o impacto inicial é sempre maior do que o impacto contínuo. Sair do frio para um calor extremo, acordar de supetão no meio da madrugada, receber uma enxurrada de luz após muito tempo no escuro. É preciso tempo para se adaptar e superar o choque inicial.
Só mais três dias8.
Esses últimos 5km foram infernais. Eu sentia os músculos do quadríceps falharem, minha panturrilha ameaçava travar. A cada minuto, precisava tirar os óculos e limpar o rosto com a camiseta, ensopada com suor. Mas era preciso terminar o que eu havia começado.
Um conhecido, que treina na assessoria da Marina, estava um pouco a frente e percebi que ele estava perdendo velocidade. Passando por ele, incentivei e disse para irmos juntos. Eu te puxo. Faltava pouco mais de 1km. Era o gás final.
Descemos o viaduto, fizemos a volta no estacionamento e avistamos a linha de chegada.
21 quilômetros, 97 metros, 50 centímetros.
Uma Meia Maratona.
Acelerei e passei a linha de chegada com 1h44min48seg. Abaixo de 5min/km de pace.
Pouco depois da Meia Maratona, eu me mudei para Campinas e entrei na assessoria de corrida. Continuo treinando três vezes por semana, continuo correndo por lazer, correndo pra viver. Com a assessoria, participei de alguns treinões, em que corri acompanhado de outros colegas; corri a LIVE! XP de Campinas e bati meu RP nos 5km, para 4:22min/km. Refiz o teste de 3km e corri para menos de 12min, dizendo para mim mesmo: tirei 10 no TACF.
Mas esses resultados, apesar de satisfatórios, não são suficientes em si. Eles contam parte da história. Eu encontro ritmo e consistência no desafio físico, na tentativa de melhorar o tempo, a velocidade, a distância. Essa é a forma como eu funciono, e eu funciono para que eu possa continuar correndo. Para o Murakami, a meta era de não caminhar durante a maratona. Para a Marina, era fazer os primeiros 5km inteiros sem parar. Para muita gente, é dar o primeiro passo — e depois o próximo, o mais rápido possível, e, assim, começar a correr.
Neste ano, comecei a correr por correr. E redescobri na corrida o prazer da constância e do ritmo. Tive o prazer de ver outros amigos começarem a correr e nada me alegra mais do que celebrar suas atividades no Strava; cada kudos9 é sincero e contente. Com a escrita da dissertação na reta final, durante os treinos eu encontrava a clareza necessária para continuar escrevendo, na medida em que colocava um pé na frente do outro. Até o dia em que depositei a dissertação, continuei com os treinos de corrida, apesar de ter, momentaneamente, deixado de treinar jiu-jitsu e ter reduzido as idas à academia, porque, correndo, em sua perfeita simplicidade, o ritmo se mantinha constante. Confiável. Estável. Apenas minhas pernas, meus pés, a rua e eu. Apenas a corrida e eu. Apenas a escrita e eu. Apenas a pesquisa e eu.
Com 2024 a horas do seu fim, corri pela última vez neste ano. 15km, a mesma distância da São Silvestre. Cansei, suei, senti as pernas queimarem e terminei a corrida.
De km em km, de mês em mês, dia em dia, hora em hora, minuto em minuto, 2025 se aproxima, com as mesmas certezas de sempre, consagradas por Sabino em O Encontro Marcado: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.
Continuaremos. Seremos interrompidos. Começaremos de novo. Faremos um novo caminho. Da queda, um passo de dança. Da interrupção, uma nova corrida.
De nós, por nós mesmos. Um pé depois do outro.
Tem quem corre por lazer. Tem quem corre pra viver. Tem quem corre perigo.
Kudos!10
Como escrever: uma palavra depois da outra. Como pedalar: uma pedalada depois da outra. Sobre isso: Escrever, correr, pedalar.
Em Do que eu falo quando falo de corrida, Murakami reflete sobre a sua relação com a corrida e com a preparação para maratonas; em Romancista como vocação, a corrida aparece atrelada ao ato de escrever.
Como funciona o tênis com placa?, por Raquel Castanharo.
Assim como em toda comunidade discursiva, o mundo da corrida tem seus jargões. Tênis de rodagem é para treino de rodagem, que, por sua vez, é o treino contínuo, em ritmo mais ameno, ao contrário dos intervalados de velocidade. Você reconhece um corredor ou pelos seus apetrechos (o bonézinho de aba curta, os óculos abaixa-pace, o Garmin) ou pelos jargões ou, então, pelo simples fato de que ele, assim como eu, vai te falar que é corredor, mesmo que você não pergunte nada.
Mais um jargão: RP é recorde pessoal, o melhor resultado no segmento; distância; etc.
O like do Strava.
Eu to um tanto quanto emotivo há um tempo. Mas a sua capacidade de me fazer chorar com seus textos é algo a ser estudado.