Didion no topo do Kilimanjaro
A quem pertence a chave dos diários de Joan Didion? Minhas dúvidas diante da notícia de publicação póstuma das anotações pessoais da escritora, endereçadas ao seu também falecido marido
Agora tudo tinha acabado, ele pensou. Agora ele nunca teria a chance de terminar. Então era assim que tudo terminava, numa discussão por causa de uma bebida. Desde que a gangrena começou em sua perna direita, ele não sentia dor, e com a dor, o horror também se fora, restando apenas um imenso cansaço e a raiva de que esse fosse o fim. Quanto ao que agora se aproximava, ele sentia pouca curiosidade. Durante anos aquilo o obcecara; mas agora não significava mais nada em si mesmo. Era estranho como o simples fato de estar cansado o suficiente tornava tudo mais fácil.
Agora ele nunca escreveria as coisas que guardou para escrever até que soubesse o bastante para escrevê-las bem. Bem, pelo menos não teria que fracassar ao tentar escrevê-las. Talvez nunca fosse possível escrevê-las, e era por isso que ele as adiava e postergava o começo. Bem, ele nunca saberia, agora.
— As neves do Kilimanjaro, Ernest Hemingway1
“Em junho desse ano a paciente experienciou um ataque de vertigem, náusea e um sentimento de que iria desmaiar”, começa a citação exposta por Didion nas primeiras páginas do ensaio O Álbum Branco. “… em sua visão, ela vive em um mundo movido por uma estranha, conflituosa, pobremente compreendida e, acima de tudo, tortuosa motivação que a compromete inevitavelmente com o conflito e o fracasso”, é a sua parte final, retirada de um relatório psiquiátrico. Em seguida, escreve Didion que “a paciente a qual esse relatório psiquiátrico se refere sou eu”2.
Quando li O Álbum Branco pela primeira vez, esse trecho me causou enorme impressão, somando-se às dúvidas que já me atormentavam a partir da leitura da obra de Didion.
Ao ler a notícia de que a Knopf publicará, em abril desse ano, o diário encontrado pelos curadores literários do legado da escritora, que morreu em dezembro de 2021, escritos por Didion a partir de 1999 após consultas com seu psiquiatra, organizados em ordem cronológica e armazenados em uma pasta endereçada a John Gregory Dunne, morto em dezembro de 2003, tive um sentimento parecido. A impressão foi grande, mas a principal sensação foi o desconforto. O desconforto de não saber, exatamente, como eu me sinto.
O que me resta é escrever.
Passei os últimos três anos imerso em minha pesquisa de O Ano do Pensamento Mágico, em que Joan Didion escreve o/sobre o período seguinte a inesperada morte de John, seu marido (“A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhece acaba”). Movido essencialmente pela dúvida (o que leva alguém a escrever o próprio luto? o que leva alguém a ler o luto do outro? quais regras estão em jogo nesse campo em que a vida representada e a vida do autor se confundem, em uma ambivalência de consumo/leitura?3), li e reli boa parte do trabalho não ficcional da autora, que, no tempo em que a primeira pessoa ressurge como lugar de destaque na narrativa literária, fez da voz própria um poderoso instrumento para pensar o mundo ao seu redor.
Em Rastejando até Belém, ensaio de 1967 escrito para o The Saturday Evening Post e que iniciou o fenômeno literário de Didion, a escritora já apresenta aquela que seria uma das mais famosas vozes ensaísticas em primeira pessoa do texto estadunidense: o ensaio é sobre Haight-Ashbury, mas é também sobre o espírito dos EUA, mas é também sobre Joan Didion e o poder da palavra (os versos de Yeats são o fio condutor dessa escrita — As coisas vão abaixo; o centro cede; / mera anarquia é solta sobre o mundo4):
Eles reproduzem exatamente aquilo que recebem. Como não acreditam em palavras – palavras são para “intelectuais”, Chester Anderson lhes diz, e um pensamento que exija palavras é apenas mais uma ego trip –, seu único vocabulário proficiente é o de platitudes da sociedade. Acontece que eu ainda estou comprometida com a ideia de que a habilidade de pensar por si só depende do domínio da linguagem, e eu não fico otimista com crianças que se contentam em dizer, para indicar que seus pais não moram juntos, que elas vêm de um “lar desfeito”. Elas têm 14, 15, 16 anos, cada vez mais jovens, um exército de crianças esperando que lhes deem as palavras
— Rastejando até Belém, Joan Didion5
Este poder da palavra aparece novamente em O Álbum Branco, escrito mais de uma década depois de Rastejando. Didion apresenta ao leitor o seu relatório psiquiátrico (em sua visão, ela vive em um mundo movido por uma estranha, conflituosa, pobremente compreendida e, acima de tudo, tortuosa motivação que a compromete inevitavelmente com o conflito e o fracasso) não pela exposição em si, mas dentro de um contexto específico de questionamento: em O Álbum Branco, a autora questiona a premissa das histórias que contou, a efetividade da narrativa, a ausência de sentido6, tema recorrente na sua produção posterior.
O melhor do seu jornalismo aparece em Jornadas Sentimentais, publicado em 1991 no The New York Review of Books, em que, novamente, o ofício de escrever é posto sob escrutínio por uma escritora que continua falando em nome próprio para analisar a reação da mídia e do público ao caso do estupro no Central Park em 1989 (que virou a minissérie Olhos Que Condenam). Anos antes de os acusados serem, finalmente, soltos e inocentados, Didion já enxergava em toda a comoção um desespero por narrativas sentimentais para explicar os fenômenos sociais a uma população desesperada por verdade, por exemplo, por quem verdadeiramente somos:
A imposição de uma narrativa sentimental, ou falsa, sobre as díspares e muitas vezes aleatórias experiências que constituem a vida em uma cidade ou em um país significa, necessariamente, que muito do que acontece nessa cidade ou país será representado como mera ilustração, uma série de cenas planejadas, ou oportunidades de performance.
[...] Em uma cidade que estava rapidamente desaparecendo dentro do abismo entre a vida real e as narrativas favoritas, o que as pessoas diziam quando falavam sobre o caso da Corredora do Central Park parecia uma espécie de poesia, uma forma de expressar, sem dizer diretamente, visões diferentes, mas igualmente voláteis e similarmente ocultas do mesmo desastre. [...] Por muito tempo, enquanto esse caso reteve a atenção febril da cidade, ele ofereceu uma narrativa para suas angústias, uma encenação em que as forças econômicas e sociais que estavam verdadeiramente dilacerando a cidade podiam ser personalizadas e, em última instância, obscurecidas
— Jornadas Sentimentais, Joan Didion7
Todos esses ensaios possuem traços autobiográficos claros, que não tentam se esconder sob o manto da pretensa objetividade. Didion parte de si para falar do todo, nunca se retirando da arena de embate ideológico. Já nos seus últimos três trabalhos não ficcionais mais longos, De Onde Eu Era (2003), O Ano do Pensamento Mágico (2005) e Noites Azuis (2011), a autora está, confessadamente, falando sobre a própria vida. Ela é, ao mesmo tempo, criador e criatura, objeto e artífice.
Em De Onde Eu Era, Didion escreve sobre o mito da história da California para falar sobre do mito de sua própria história e de sua família, a partir da morte da mãe e da adoção de Quintana, sua única filha8. Em O Ano do Pensamento Mágico, a morte de John e a doença de Quintana. Em Noites Azuis, a morte de Quintana, a velhice, a fragilidade, o medo de perder a capacidade de encontrar a palavra certa.
Faço essas reminiscências como uma defesa prévia das minhas dúvidas, um esclarecimento: é claro que Didion escreveu em nome próprio, é claro que Didion escreveu sobre a sua privacidade e intimidade, é claro que Didion tornou público o que havia de mais doloroso em seu coração. É claro que, em primeira pessoa, Didion fez da clareza, da precisão e da honestidade as bases do seu texto. É Didion quem escreve em O Ano do Pensamento Mágico: a forma como eu escrevo é quem eu sou. O truque de mágica de Didion reside na sua capacidade de se mesclar a sua escrita de tal forma que, por um momento, somos convencidos de que ela e o texto são um só, e assim temos acesso a tudo.
Mas não são. Mas não temos.
O que todos esses trabalhos têm em comum é que eles foram publicados pela autora, por sua decisão. A primeira pessoa reivindicou a sua posição e pediu para ser ouvida, estabelecendo, nas posturas do Eu, um estatuto ético com o leitor, que é convidado a participar da constituição dialógica do sentido da representação da experiência9.
Em Notes to John, as posturas estão desestabilizadas, o estatuto ético é corrompido: não havia, aparentemente, qualquer instrução da autora para a publicação dos diários, que não foram compartilhados por ela em vida com seus agentes. Segundo o The New York Times, ninguém sabia da existência do texto. Ainda assim, os curadores do seu espólio literário decidiram pela publicação e pela exposição dos originais. Jordan Pavlin, da Knopf, disse que os diários preenchem grandes lacunas de nossa compreensão em relação ao pensamento de Didion.
Mas será que preenchem?
Ou melhor: será que deveriam preencher?
Ou melhor: será que temos o direito a esse preenchimento íntimo?
Quando a escrita da minha dissertação já estava quase no fim, ouvi a entrevista que Didion deu a David L. Ulin na Los Angeles Public Library, em 2011, após o lançamento de Blue Nights. Felizmente só ouvi a entrevista quando meu trabalho estava encaminhado e decidido, porque não sei se teria sido capaz de resistir ao impulso de tomar a palavra de Didion como linha condutora das minhas próprias conclusões: a autora diz que De Onde Eu Era, O Ano e Noites Azuis foram escritos como uma espécie de trilogia; que ela nunca pensou em nenhum dos livros como livros de memória; e que todos foram escritos para o leitor.
Minha proposta de leitura para O Ano (e também para os outros dois títulos, em alguma medida) é reconhecê-lo como uma espécie de perlaboração literária, do alemão durcharbeiten10, um trabalho de enfrentamento e superação das resistências, em que o leitor é pressuposto como parte desse processo, a quem o texto se dirige. Ao inserir o seu luto na cadeia discursiva dos lutos, Didion, a um só tempo, defronta o déficit narrativo contemporâneo do luto11, e possibilita que a sua voz se uma consciência coletiva e dialógica, em que repousa o sentido12.
Assim, ainda que estejamos, ao ler essas obras, respondendo ao anseio pela intimidade do outro, alimentando nossa paixão pelo privado (já escrevi sobre o tema algumas vezes), esse acesso é mediado, pactuado pelo fato de que o texto autobiográfico nunca é verdadeiramente individual, porque centrado em um sujeito descentrado e incompleto. E este sujeito descentrado e incompleto convida nossas individualidades, também descentradas e incompletas, para tomar parte no texto.
Não me parece ser o caso de diários privados, cuja existência era desconhecida.
No caso de Didion, os textos estavam em uma pasta endereçada a John - começaram a ser escritos em 1999 e não sei até quando duraram, mas posso supor que terminaram de ser escritos antes de 2003, quando John morreu. Há um destinatário, mas esse destinatário não está mais vivo. Ao se escrever um diário, a quem se escreve?
Todo texto se destina a alguém, mesmo o texto escrito em segredo. Se esse alguém é de carne e osso, se esse alguém é o público leitor, se esse alguém é um pressuposto subjetivo é o próximo passo, mas o texto, ao ser escrito, está direcionado. Por isso usamos palavras inteligíveis, por isso construímos frases coerentes: mesmo que o texto seja escrito para entendermos como pensamos, estamos dirigindo esse texto para fora, ao pressuposto subjetivo, para que ele retorne a nós e sejamos capaz de decodificar nossos próprios pensamentos, agora processados pela linguagem.
relembra a carta não enviada de Lacan, exposta no Seminário sobre a Carta Roubada, que sempre chega ao seu destino: aquela que não é enviada é a carta que, verdadeiramente, encontra o seu destinatário (o pressuposto subjetivo, o grande Outro)13.Todo texto se destinar a alguém não quer dizer, no entanto, que todo texto se destina a ser lido por todos. Há plot mais previsível do que o clássico mãe lê o diário secreto da filha em enorme invasão de sua privacidade nas comédias adolescentes?
Philippe Lejeune, um dos grandes nomes da teoria sobre o texto autobiográfico/não-ficcional/autoficcional contemporâneo, chama o diário de antificção, em contraponto a autobiografia, que sempre vive sob o encanto da ficção:
Não somos seres mentirosos; somos seres narrativos, constantemente reconstruindo o passado para ajustá-lo aos nossos planos para o mundo de hoje. Mas, mesmo quando guiada por uma preocupação ética com a veracidade, esse tipo de reconstrução implica flertar com a invenção. Parece-me que, nesse aspecto, autobiografia e diário têm objetivos opostos: a autobiografia vive sob o encanto da ficção; o diário é ancorado na verdade.
— The Diary as “Antifiction”, Philippe Lejeune14
Aqui, Lejeune não está falando sobre falsidade e realidade, ou mentira e verdade. Lejeune está falando sobre a postura adotada na escrita. E essa postura está, justamente, atrelada a noção de destinatário e, para Lejeune, de pacto, termo que vai aparecer ao longo de sua obra para pensar a escrita/leitura de obras autobiográficas15. Além do destinatário que está aqui como pressuposto, possibilitando o perecimento (nos limites do possível) do impulso ficcionalizante, o diário lida com a ausência de controle: o autor do diário não pode, como faz o autor da autobiografia, pois o dia de amanhã ainda não está dado — a próxima página ainda está por acontecer. Na autobiografia, já aconteceu. Em um, olha-se para o agora pensando no amanhã; no outro, olha-se para o ontem pensando no agora.
Didion não é estranha a diários e anotações privadas. Em O Ano, as notas de John aparecem — o arquivo se chama AAA Random Thoughts, e Didion escreve que a última alteração ocorreu em 30 de dezembro de 2003, às 13h08min, o dia em que John morreu. Das 80 páginas do arquivo, Didion não sabe qual foi a última anotação de John.
No ensaio On Keeping a Notebook16, Didion aborda expressamente os diários privados, os cadernos de notas que não se pretendem públicos, em que tudo gira em torno do eu, o implacável eu:
Mas nossos cadernos nos denunciam, pois, por mais diligentemente que registremos o que vemos ao nosso redor, o denominador comum de tudo o que vemos é sempre, de forma transparente e descarada, o implacável "eu". Não estamos falando aqui do tipo de caderno destinado claramente ao consumo público, uma construção estrutural para reunir uma série de pensamentos elegantes; estamos falando de algo privado, de fragmentos da mente curtos demais para serem aproveitados, uma coleção indiscriminada e errática que só faz sentido para quem a criou.
— On Keeping a Notebook, Joan Didion
Notes to John, o marido morto, textos mantidos em segredo pela autora, eram destinados ao público? Ou algo que só fazia sentido para quem os criou — e para o destinatário ausente pela morte?
Entre John e Joan, havia um estatuto ético em vigor público: ambos estavam unidos pela escrita. O maior presente que Joan já recebeu do marido, em suas próprias palavras, foi quando John leu em voz alta um trecho do romance A book of a common prayer, de Didion, e disse: nunca mais me diga que você não consegue escrever. Esse é meu presente de aniversário para você. Quando perguntada sobre o que John achou do ensaio de Didion em que ela falava que eles estavam prestes a se divorciar, ela respondeu: o que ele achou? Ele editou o ensaio. Nesse estatuto, parece justo o acesso às notas do outro, porque esse acesso é compartilhado. Ao endereçar os diários para John, o nosso acesso aos textos é, também, justificado em nome da tradição e do interesse literário?
Podemos recorrer a própria Didion, que faz parte da longa lista de escritores que escreveram incessantemente sobre a escrita e sobre outros escritores, para saber o que ela acha. Em Last Words17, de 1998, ou seja, um ano antes de os diários de Notes to John começarem a ser escrito, Didion reflete sobre a publicação póstuma de cartas e romances inacabados de Ernest Hemingway, especialmente True at first light, e o tom é tudo, menos simpático a decisão de Mary Welsh Hemingway, viúva de Ernest, em publicar as cartas privadas do autor e a edição realizada por Patrick Miller Hemingway, filho do escritor, no romance inacabado.
Escreve Didion que a peculiaridade de ser um escritor é que todo o empreendimento envolve a humilhação mortal de ver as próprias palavras impressas no papel. Por isso, a noção de que palavras que o escritor não arriscou publicar devam continuar abertas a “contínua investigação” [ou: o preenchimento de lacunas, como sugere Pavlin] não pode despertar entusiasmo. Joan Didion sabia o valor da sua imagem; sabia a atração que sua persona causava no público. Sabia posar, sabia, para além de escrever, mover-se enquanto ícone pop. Em 2015, já octogenária, Didion estrelou a campanha da Céline, em fotografia que, como escreveu Nathalie Olah, reflete como Didion sempre está no controle do tom18.

Então apenas a inocência e o cinismo ditariam um argumento que retrata Didion como refratária ao marketing, ao poder da publicidade, ao assombro da imagem. Mas também apenas o cinismo permitiria que compreender a dinâmica da relação da imagem de Didion com o seu sucesso autorizaria um acesso ilimitado aos seus textos, a partir da criação de, nas suas palavras sobre a obra póstuma de Hemingway, um corpo de trabalho, um produto marketável que obscurece o trabalho anterior do autor — no caso de Didion, em uma subversão do controle e do domínio que acompanham suas narrativas publicadas em vida.
Ela escreve que ou você se importa com pontuação ou você não se importa; ou você se importa com os “e” e “mas” ou você não se importa; ou você acha que algo está pronto para ser publicado ou você não acha. Hemingway se importava. Didion também parecia se importar.
Em Noites Azuis, a morte da filha da autora, que, ao contrário de O Ano, aconteceu anos antes da escrita e do lançamento do livro, catapulta um movimento de percepção da própria fragilidade física que se reflete na fragilidade da escrita. A certo momento da narrativa, a escritora reproduz as suas notas pessoais de 1995 que foram utilizadas para escrever o romance The Last Thing He Wanted, publicado em 1996:
“What we need here is a montage, music over. How she: talked to her father and xxxx and xxxxx—
“xx,” he said.
“xxx,” she said,
“How she did this and why she did that and what the music was when they did x and x and xxx—
“How he, and also she—”
As notas são apresentadas como evidência de que ela estava rascunhando no ritmo e deixando o ritmo me falar o que eu estava dizendo. Como uma música, a posição das notas tinha importância, a quantidade de x’s era relevante: a organização era o significado.
Quando John Dunne morreu, seu livro Nothing Lost estava em revisão final na editora — ou seja, John já havia decidido que o texto deveria ser publicado — e o material foi enviado à Didion antes da publicação. Ela revela, em O Ano, que uma frase parecia ter um erro gramatical: It was as close a declaration of love as J. J. was capable of making, no original, ou It was as close to a declaration of love as J. J. was capable of making. Deveria ou não haver a preposição to após close? Didion sofre diante do texto do marido, hesitante em tomar qualquer decisão sob risco de trair a confiança de John. Toda escolha tinha um potencial de traição: deixar o erro, se fosse um erro; alterar a redação, se não fosse um erro. Sua decisão foi por manter o texto como estava: se fosse um erro, era um erro que estava lá desde o primeiro manuscrito.
Ou você se importa. Ou você não se importa. E Didion se importava. Qual o potencial de traição ao publicar seus diários não divulgados em vida? Quem é parte nesse potencial de traição?
Escrevendo sobre si e a partir de si na não-ficção, Didion não se furtou de explorar os limites da ficção. Em Democracy, romance publicado em 1984, a autora se insere na narrativa fictícia como a autora, nominalmente, falando diretamente ao leitor:
Me chame de o autor.
Deixe que o leitor seja apresentado à Joan Didion, cujos caráter e ações de muito dependerá qualquer interesse que estas páginas possam ter, enquanto ela se senta à sua mesa em seu próprio quarto em sua própria casa em Welbeck Street
— Democracy, Joan Didion
A presença do autor em nome próprio, em identidade onomástica com o nome da capa do livro, preenche de conflito o pacto de leitura e desestabiliza a posição do leitor, pois o véu simulado do espaço autônomo é removido. Porém, aqui está em jogo uma estratégia narrativa, um trabalho de estilo, ou, para retomar Lejeune, uma postura especificamente ficcional. Diz Didion, em Last Words, que buscar na ficção remendos da vida pessoal do autor é um indicativo da inabilidade do leitor, é uma negação da noção de ficção. Assim como é uma negação, em suas palavras, a publicação de um trabalho não finalizado do papel do escritor em tomar essa decisão.
E essa decisão não foi tomada por Didion. A decisão dos curadores do seu espólio literário certamente será rentável — se os óculos escuros de Didion foram leiloados por $27.000,00, as suas palavras mais íntimas, privadas e secretas gerarão lucros estrondosamente superiores. Que o mercado editorial atua pelo lucro não é surpresa para ninguém. Se há limite para essa atuação é uma discussão sempre renovada (e quase sempre perdida, é verdade).
Enfim, e nós, o que procuramos nesses textos? O que procuramos nesses diários privados? Como justificamos nosso interesse lascivo na privacidade escondida sob a chave do diário? Como justificamos a incorporação do papel da mãe / irmã / tia má das comédias adolescentes que violam a intimidade da protagonista? Temos uma longa e profícua tradição de diários publicados — Virginia Woolf, Kafka, Dostoiévski —, alguns que servem a própria produção literária, como os registros de Simone Beauvoir e A ridícula ideia de nunca mais te ver, de Rosa Montero.
Queremos saber o que esses escritores pensam. Queremos para além da intimidade que eles nos revelaram: queremos aquilo que é a antificção, o privado inclusive da privacidade pública. Queremos o acesso quase-sexual ao que pensou, ao que sentiu, ao que viveu o autor. No sujeito moderno, inventamos a intimidade para que ela seja exposta à visibilidade19, em um jogo duplo de tentado-tentação da autorrevelação, do rastro, de se mostrar pelo buraco da fechadura na medida em que o público alimenta essa subjetividade em seu vício da voz própria, do acesso ilusório.
Quanto mais desencantados, quanto mais descentrados, quanto mais cientes da falta que nos constitui, mais perseguimos o desejo do outro, que é o nosso desejo20 — queremos decifrar o outro para decifrar a nós mesmos. Barthes cunha o termo biografema21 como o traço biográfico que, na vida de um escritor, encanta o leitor; e se pudermos mergulhar na fonte dos biografemas? E se pudermos consumir os biografemas em sua forma pura?
Além da vida secreta, isto é, fora do público, o diário secreto ainda tem em sua causa-desejo, seu objeto a, a própria transgressão: pegar a chave que não nos pertence, violar a regra, abrir um caderno que não é nosso, com palavras que não são para nós — ocuparmos o lugar do destinatário que não tem o nosso nome. O diário não é nada em si mesmo, um caderno como todos os outros: chamamos de diário, dizemos que é secreto, abrimos a pasta endereçada a John Dunne e, de repente, ele se transforma em algo novo, em algo proibido. Transmutado pelo desejo do acesso, o diário ganha forma: Notes to John, a ser publicado em abril de 2025, um segredo compartilhado com todos nós, que esperamos ansiosos para saber quais palavras Didion não trouxe ao público.
Lejeune escreve que a paixão por diários está baseada em duas coisas: a primeira, é a sensação de tocar o tempo; a segunda, é a de participar em uma corrida de revezamento, em que eu leio o diário de alguém na expectativa de que alguém leia o meu diário um dia, antecipando o movimento, mesmo ciente de que no final, a morte sozinha terá a última palavra, pois é este, afinal, o destino de todo diário.
Não tenho certeza de que Didion (ou qualquer outro autor que manteve diários secretos) tivesse a intenção de participar de uma corrida de revezamento. Mas assim como o escritor personagem de As neves do Kilimanjaro, de Hemingway, bem, ela nunca saberá, agora, que está participando.
Façamos o melhor para não derrubar o bastão quando for a nossa vez.
No original, The snows of the Kilimanjaro, conto publicado em 1936: “So now it was all over, he thought. So now he would never have a chance to finish it. So this was the way it ended in a bickering over a drink. Since the gangrene started in his right leg he had no pain and with the pain the horror had gone and all he felt now was a great tiredness and anger that this was the end of it. For this, that now was coming, he had very little curiosity. For years it had obsessed him; but now it meant nothing in itself. It was strange how easy being tired enough made it.
Now he would never write the things that he had saved to write until he knew enough to write them well. Well, he would not have to fail at trying to write them either. Maybe you could never write them, and that was why you put them off and delayed the starting. Well he would never know, now”.
No livro Didion, The 1960s & 70s, que compila alguns dos mais famosos ensaios e ficções da autora, editado por David L. Ulin e publicado pela The Library of America, a passagem está entre as páginas 751 e 752. O livro O Álbum Branco, coletânea de ensaios que tem como primeiro texto o ensaio homônimo, está disponível em português pela HarperCollins, com tradução de
. Os excertos da Didion que aparecerem ao longo deste texto foram traduzidos livremente por mim do inglês original.As questões que suscitei durante minha pesquisa estão, em parte, orientadas pelo trabalho de Leonor Arfuch em O espaço biográfico: “Que paixão desmesurada e dialógica impulsiona a tal extremo o desvelamento, a exposição e o consumo quase viciantes da vida dos outros? Que registro do pulsional e do cultural está em jogo nessa dinâmica sem fim? Como definir hoje, diante dessa diversidade, o valor biográfico? Como pensar, nessa incessante multiplicação de formas, a qualidade paradoxal da publicidade do íntimo/privado? Há usos — e gêneros — biográficos "melhores" que outros? Há verdadeiramente — e são necessários — limites do dizível e do mostrável?” (2010, p. 61).
Também em Didion, The 1960s & 70s, p. 308.
É em O Álbum Branco que uma das citações mais famosas de Joan Didion aparece, abrindo o ensaio: “Nós contamos histórias a nós mesmos para podermos viver. [...] Procuramos o sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de cinco pessoas. Nós interpretamos o que nós vemos, selecionamos a mais viável de várias possibilidades. Nós vivemos inteiramente, especialmente se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens díspares, por “ideias” com as quais nós aprendemos a congelar a fantasmagoria cambiante que é a nossa experiência real.
Ou, pelo menos, fazemos isso por um tempo. Eu estou falando sobre um momento em que eu passei a duvidar das premissas de todas as histórias que eu já havia contado a mim mesma, uma condição comum, mas que achei perturbadora” (p. 749).
O ensaio está disponível integralmente no site do The New York Review of Books.
É a presença de Quintana o propulsor da quebra de encantamento de Didion em relação às histórias em que ela acreditou durante toda a sua vida sobre a fundação da California, a fundação dos EUA, o mito de sua criação: “Eu estava prestes a explicar isso para Quintana — o bar, a calçada de madeira, as gerações de primos que tinham caminhado exatamente como ela caminhava por esta rua em dias tão quentes quanto este — quando eu parei. Quintana era adotada. Quaisquer fantasmas dessa calçada de madeira não eram, de fato, responsabilidade de Quintana. Esta calçada de madeira não representava, na verdade, nenhum lugar de onde Quintana fosse. As únicas ligações de Quintana com essa calçada de madeira eram o agora, aqui, eu e minha mãe. Na verdade, eu não tinha mais ligação com essa calçada de madeira do que Quintana: não era mais do que um tema, um efeito decorativo.
Apenas Quintana era real”. De Onde Eu Era está disponível em ebook na Amazon, no inglês original, e não foi publicado no Brasil.
Sobre isso, peço a licença para cometer a indiscrição de recorrer a minha própria pesquisa: “Nestas narrativas de si, centradas no eu, em que o sujeito se insere como origem e objeto do seu próprio discurso, há uma relação em que, de acordo com Lejeune, o eu ‘oculta a diferença entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado’ (1977, p. 31, tradução nossa). A proposição de Lejeune é construída a partir do que ele chama de posturas do Eu, extraídas de Benveniste, para quem ‘eu significa ‘a pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu’’ (1991, p. 278, itálico no original). A fundamentação da subjetividade se encontra, ela própria, na e pela linguagem, em que é possível se propor enquanto sujeito”.
O termo aparece em Recordar, Repetir e Elaborar de Freud (1914), e é categorizado por Laplanche e Pontalis (1967) da seguinte forma: “a) A perlaboração incide sobre as resistências;
b) Sucede geralmente à interpretação de uma resistência, que parece não produzir efeito; neste sentido, um período de relativa estagnação pode encobrir esse trabalho eminentemente positivo em que Freud vê o principal fator de eficácia terapêutica;
c) Permite passar da recusa ou da aceitação puramente intelectual para uma convicção fundada na experiência vivida (Erleben) das pulsões recalcadas que “alimentam” a resistência”. Neste sentido, é “mergulhando na resistência” que o sujeito realiza a perlaboração”.
Em Lutos Finitos e Infinitos, de Christian Dunker (2023): “A cultura contemporânea conta cada vez com menos recursos para enfrentar o luto. O declínio da mítica e da ritualística religiosa, a ascensão de formas cada vez mais individuais, para não dizer solitárias, no enfrentamento da morte, assim como sua indivisibilidade social, por trás de aparelhos e instituições médicas, parecem expor a experiência do luto a um déficit narrativo generalizado” (p. 207).
Esta é a natureza dialógica da constituição do discurso humano, a partir de Bakhtin, na análise de José Luiz Fiorin (2019): “O mundo interior é formado a partir da heterogeneidade dialógica das vozes sociais. Os enunciados, construídos pelo sujeito, são constitutivamente ideológicos, pois são uma resposta ativa às vozes interiorizadas. Por isso, eles nunca são expressão de uma consciência individual, descolada da realidade social, uma vez que ela é formada pela incorporação das vozes sociais em circulação na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, o sujeito não é completamente assujeitado, pois ele participa do diálogo de vozes de uma forma particular, porque a história da constituição de sua consciência é singular. Ele é um evento único, porque responde às condições objetivas do diálogo social de uma maneira específica, interage concretamente com as vozes sociais de um modo único. A realidade é centrífuga, o que significa que ela permite a constituição de sujeitos distintos, porque não são organizados em torno de um centro único”.
Em Gestos vazios e performativos, do livro Como ler Lacan?
O ensaio faz parte da coletânea On Diary, com textos do autor sobre o tema, publicado em 2009 pelo Biographical Reserach Central da Universidade do Havaí.
Sobre isso, sugiro a leitura de O conceito de autoficção, de Anna Faedrich, que é construído a partir das noções de pacto autobiográfico de Lejeune e explora as posições do escritor/leitor em obras que falam da vida real.
O ensaio está no livro Rastejando até Belém como Sobre ter um caderno, na tradução de Maria Cecilia Brandi.
Sobre isso, O espaço biográfico na (re)configuração da subjetividade contemporânea, de Leonor Arfuch.
Escreve Zizek que “[p]ara Lacan, o impasse fundamental do desejo humano é que ele é o desejo do outro tanto no genitivo subjetivo quanto no objetivo: desejo pelo outro, desejo de ser desejado pelo outro, e, especialmente, desejo pelo que o outro deseja”, em O sujeito interpassivo (Como ler Lacan?, p. 48).
Sobre a noção de biografema em Barthes: “Inveterado inventor de neologismos, Roland Barthes, enuncia, em Sade, Fourier, Loiola, livro de 1971:’(…) Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagens (esse flumen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante (…)’.Grafado entre aspas, o neologismo ‘biografema’ passou a fazer parte da teoria literária, inserindo-se na crítica como aquele significante que, tomando um fato da vida civil do biografado, corpus da pesquisa ou do texto literário, transforma-o em signo, fecundo em significações, e reconstitui o gênero autobiográfico através de um conceito construtor da imagem fragmentária do sujeito, impossível de ser capturado pelo estereótipo de uma totalidade. Mais tarde, em 1980, o semiólogo francês define, em A câmara clara, seu novo neologismo; “(…) Gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de ‘biografemas’; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia” (p. 51). O biografema será, pois, um fragmento que ilumina detalhes, prenhes de um ‘infra-saber’, carregado de, barthesianamente falando, certo fetichismo, que vem a imprimir novas significações no texto, seja ele narrativo, crítico, ensaístico, biográfico, autobiográfico, no texto, enfim, que é a vida, onde se criam e se recriam, o tempo todo, ‘pontes metafóricas entre realidade e ficção’”. disponível em. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL).