Centrípeta: centrum, centro, e petere, buscar.
Em W. B. Yeats:
things fall apart; the centre cannot hold1.
Assim o centro me chamou: pelo meu nome, estampado no diário oficial, convocado ao cargo público. Mas eu não ouvi, de imediato, o chamado. O ano era 2016 e meu celular tocou no meio da aula na faculdade. Fiz o que geralmente não faço: saí para atender um número desconhecido, com DDD 11. E a voz do outro lado me chamou outra vez, de novo pelo meu nome: Gabriel?
Sim, sou eu, é o nome que me deram quando nasci e o nome que tomei por meu desde então, cada dia mais, cada dia outro.
A voz esclareceu: ligava do Tribunal, queria saber se eu tinha ou não interesse na vaga para a qual fui nomeado, porque o tempo estava se esgotando. É claro, o tempo sempre está se esgotando, se não para isso, então para aquilo. Expliquei que eu não havia visto a nomeação, tinha me confundido com a publicação, mas sim, eu tinha interesse. Foi o que expliquei, apesar de não saber se tinha ou não interesse. Eu ouvia o chamado do centro, mas eu não queria ir. Eu resistia, ali, às primeiras forças exercidas sobre mim. Eu queria ficar onde eu estava — em uma boa cidade, em um bom apartamento, com bons amigos. Mas o tempo ali estava prestes a se esgotar, e disso eu também sabia. Aquele intervalo de alegria tinha hora para acabar e essa hora se aproximava cada vez mais. Era preciso começar a se despedir, era preciso aceitar que o encanto era passageiro e que eu sabia, desde o começo, que era passageiro (tentava afastar a ideia, a sensação de que a areia da ampulheta não parava de cair, mas elas estavam lá: a ideia, a sensação, a certeza de que o encanto era passageiro). O cargo público vinha acompanhado de um salário mensal que me faria poder viver com um pouco mais de tranquilidade, algo que eu há muito desconhecia — mesmo ali, naquele intervalo, a tranqulidade era mediada, porque eu temia o dia seguinte, o mês seguinte. Era preciso ir. Era preciso aceitar o chamado.
Foi assim que decidi — assim ficou decidido por mim — me mudar para São Paulo. O ano era 2016, no mês de abril, eu tinha, naquele dia, 21 anos de idade.
Crescer no interior paulista é ter São Paulo, a Capital, como uma ideia inafastável, presente e ausente em um paradoxo insuperável. São Paulo é o Outro que tudo move, o corpo ao redor do qual nossas vidinhas em nossas cidadezinhas se desenrolam. Grande demais para ver completamente, por inteiro, grande demais para não ver.
É uma questão de distintas dimensões de grandeza. Crescer no interior paulista é saber que a cidade tem fim — é conhecer o fim da cidade, poder acessá-lo com as próprias pernas, sobre uma bicicleta, ou, no pior dos casos, em um carro. É poder atravessar a cidade, chegar do outro lado, depois voltar. É se referir a rua principal como rua principal e ser compreendido. Sair do interior paulista e ir para São Paulo é perder a compreensão do fim: a cidade se espalha para todos os lados, infinita. É caminhar dia e noite, todos os dias, e não avistar a divisa, a fronteira, o que encerra São Paulo em si mesma. É sempre ser levado novamente ao centro, do ponto de onde partiu, cada vez menos consciente de tudo que lhe cerca.
Ao crescer no interior paulista, eu ia para São Paulo como se vai em um médico especialista de agenda disputada. Ia para São Paulo para um evento, sendo a própria ida um evento em si. Subia no Vale do Tietê, saía da rodoviária de Boituva, ganhava a Castelo até parar na Barra Funda. Seguia as orientações, as regras, as ordens da mãe. Tudo com muito cuidado, porque São Paulo era um bicho diferente. Ia para São Paulo com a escola, em excursão. Ia para São Paulo fazer as provas — a da EPCAr, a do Colégio Naval, e, anos depois, a do Tribunal. Ia para São Paulo para fazer os exames, cumprir os ritos. Tudo aquilo que só acontecia em São Paulo, o centro de tudo. O que não poderia acontecer em outro lugar.
Ia para São Paulo nunca para ficar. Ia para São Paulo certo de voltar.
E então.
Quando a gente se levanta / Quanta coisa aconteceu2.
E então eu estava em um apartamento vazio no centro daquela cidade que eu não sabia como começar a compreender, órfão de pai e mãe, órfão de terra e de laços, uma cidade da qual entrei e saí uma porção de vezes sem nunca nada deixar ou tirar. E então eu estava em um apartamento vazio no centro daquela cidade, em uma rua que eu jamais havia pisado, para começar uma vida que não parecia ser minha mas que a mim tinha sido dada, imposta, o lance do destino que ziguezagueia com a gente.
Ali eu estava. Julho de 2016. Eu tinha, então, 22 anos.
Do Anhangabaú para o Brás, na linha vermelha, no começar do dia, e do Brás para o Anhangabaú no seu final, de segunda a sexta. Não sei mensurar quantas vezes fiz esse percurso nos primeiros dois anos em que vivi em São Paulo, indo do meu apartamento até o fórum. Sorte que é no contrafluxo, um colega de trabalho disse. Sorte, eu respondi. Era sorte, mesmo, não ficava tão cheio quanto o sentido contrário, o que não quer dizer que não ficava cheio. É tudo perspectiva. Cheio sempre estava.
E às vezes estava mais do que cheio. Como na vez em que uma das muitas chuvas fortes havia inundado parte da cidade e quando subi pelas escadas para a plataforma no Brás, tudo era gente. Uma massa de pessoas molhadas tentando voltar para casa.
Nunca me senti menos poeta. Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima3. Nunca a minha solidão esteve menos povoada, inclusive de mim.
Eu me inseri e fui inserido naquela multidão, cujo movimento era um só, alheio às vontades individuais. Cheguei na estação às 17h10min. Entrei no metrô às 19h30min. Cheguei em casa às 19h55min.
Não me lembro com clareza, mas estou certo de que, naquele dia, eu senti uma enorme tristeza. Ou apenas cansaço. Quantos como eu? Quantos, se não eu?
Busquei tomar para mim um pouco daquele centro de cidade. Fui tomar café na padaria da esquina do outro lado da rua, que estava falindo. A estufa de salgados já ficava vazia, a máquina de espresso não funcionava, o coado estava sempre frio. Alguns meses depois, as portas fecharam. O mercadinho do térreo do meu prédio vacilou entre funcionar até as 22h ou rodar 24h, mas permaneceu fiel e presente. Às sextas e sábados, um grupo de metaleiros e punks e simpatizantes se reunia a frente do mercadinho e lá ficava a noite toda, bebendo e rindo. Eu ouvia as risadas enquanto tentava dormir, sem conseguir. Não havia muito do que rir, para mim. Um dia, eles pararam de aparecer. Talvez tenha sido depois da pandemia. Talvez tenha sido antes. O tempo funciona assim: vai se borrando, não é possível encarar de frente, anamorfose que é. Não me lembro. Sei que pararam de aparecer, enquanto o mercadinho continuou aberto para outros clientes, e senti falta dos metaleiros e dos punks e dos simpatizantes. Senti que as coisas estavam sempre se perdendo.
Visitei constantemente o Shopping Light, que ficava na rua de cima. Ia até lá tomar café, primeiro na cafeteria do segundo andar, depois na Benjamin, que fechou, depois no Starbucks, que também fechou, e depois, de novo, na cafeteria do segundo andar, que continuou aberta.
Em 2017, transferi minha matrícula para a São Francisco, que ficava a 10 minutos caminhando da minha casa. Fui e voltei, atravessando o Viaduto do Chá, tarde da noite, com as mãos nos bolsos e olhos atentos, cruzando a ponte escura acompanhado pelo temor constante. Claro, a São Francisco é a faculdade mais antiga do país, é parte da história da república brasileira, mas cada vez que eu lá pisava eu não me sentia parte da história, do tempo, da tradição. Eu não sei bem o que eu sentia. Pressa, cansaço, desconfiança?
Enfim me matriculei na academia que ficava no vale e passei a treinar diariamente, até a pandemia. No fim das restrições, passei a treinar na academia do Shopping Light, parando, depois de cada treino, para tomar um cafézinho no segundo andar.
Um dia, um homem abaixou as calças e cagou na calçada enquanto eu cortava o cabelo. Não sei o que isso significa, mas eu vi acontecer.
Agora eu percebo. Eu não sei o nome das moças dos caixas do mercadinho, do dono da cafeteria, do recepcionista da academia. Eu poderia culpar São Paulo, mas a culpa é, também, minha. Resisti ao centro sem querer, sem pensar. Não quis fazer parte, porque nunca senti que faria.
Agora eu percebo. Eu me protegia, mas de quem? De mim, do mundo, do medo, da queda do centro.
Na medida em que o indivíduo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva: Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável4.
Ao meu redor, ao redor do centro, havia toda aquela vida espalhada pelas ruas. Vidas esquecidas, que insistiam em continuar vivendo numa procissão mortal. Cada ida ao metrô, ao Shopping, à Faculdade envolvia pular um, dois, três corpos, negar a mão estendida, seguir resoluto e entristecido. É uma cidade grande e, ainda assim, parece não caber todo mundo. Cabe, claro que cabe, mas parece não caber.
A noite, quando não estava na faculdade ou treinando com o time de basquete, eu corria no vale. Fiz uma inimizade mortal e saudável com um cachorro com um dos habitantes do concreto do vale, um cachorro preto, grande e irritado que, ao me ver passar, disparava latindo, tentando morder meus tornozelos — com sucesso, vez ou outra, mas sem força ou agressividade. Ele se satisfazia em tocar os dentes em mim, como quem diz Veja o que eu posso fazer, e eu via, via e sentia, e meu coração disparava. Ele corria até o seu dono gritar Ô, negão, volta aqui, e ele voltava.
Um dia, não encontrei o negão. Dois dias, três. E nunca mais. Penso nele até hoje.
Sei o seu nome, mas não sei o nome do seu dono.
Veja como as coisas são.
Do Anhangabaú à Itaquera na linha vermelha em dias de jogo do Corinthians. Os dias em que São Paulo tomava outra feição, em que nós fazíamos as pazes.
22 de fevereiro de 2017, uma quarta-feira. Saí de casa com a camisa do Corinthians, fui para o metrô e me dirigi, junto àquele corpo de metal cheio de outros corinthianos, para o estádio. Seria a primeira vez que eu assistiria um Corinthians e Palmeiras ao vivo.
Com o estádio cheio, o Corinthians sofria, ainda tratado como a quarta força do estado (naquele ano, seríamos campeões do Paulista e do Brasileiro). Aos 45 do primeiro tempo, o absurdo acontece: Gabriel, do Corinthians, leva cartão por uma falta que outro jogador cometeu e é expulso. O estádio enlouquece — não demorou cinco minutos para que todos ficassem cientes do que tinha acontecido pelos celulares. O jogo fica paralisado, mas o árbitro não volta atrás. A torcida não para de cantar. Com um a menos o segundo tempo inteiro, o Corinthians resiste. O empate seria heróico.
Mas a noite tinha outra coisa em mente.
Aos 42 do segundo tempo, Maycon rouba a bola no meio do campo, avança pela esquerda, encontra Jô na entrada da área, que faz o gol. 1x0 Corinthians. O estádio explodiu. Perdi a voz de tanto gritar. Abracei desconhecidos como se fossem meus irmãos e irmãs. Com o apito final, o jubilo.
A volta para casa foi uma fantasia febril. Todos os vagões estavam lotados de corinthianos, que não paravam de cantar. Mediados pelo futebol, éramos, enfim, um só. A solidão povoada pela paixão coletiva. Eu não queria estar em nenhum outro lugar, em nenhum outro momento, além do centro.
Naquela noite, demorei a dormir.
(Quando pesquisei sobre esse dia para escrever, descobri que foi no mesmo dia em que Alexandre de Moraes foi aprovado pelo Senado para ser o novo ministro do STF. Você veja como as coisas são: as consequências de um evento quase nunca se revelam, minimamente que seja, em seu nascimento)
Eu me formei. Recebi o meu diploma da São Francisco. Fui à Cidade Universitária diversas vezes, pegando o 7411, que faz Centro/C.U. Enlouqueci esperando o 7411 nos dias de trânsito. Enloqueci outra vez indo de metrô até o Butantã, só para não conseguir, de lá, chegar na Cidade Universitária. Fui assaltado esperando o 7411 na frente do João Mendes. Conheci a teoria literária e tudo mudou. Em 2022, com 27 anos, entrei no Mestrado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada para pesquisar sobre o livro que li nos dias seguintes a morte da minha mãe, que aconteceu dois meses antes de eu me mudar para São Paulo. O Ano do Pensamento Mágico.
A dor do luto, quando ela chega, não é nada do que esperamos que ela seja. [...] A dor do luto é diferente. A dor do luto não tem distância. A dor do luto vem em ondas, paroxismos, apreensões súbitas que enfraquecem os joelhos e cegam os olhos e oblitera a cotidianidade da vida5.
Olhando agora, percebo como nos primeiros anos em que vivi em São Paulo eu mantive esse pensamento fluído, suspeito, inundado de luto. Meu luto se entrelaçou com a mudança para uma nova cidade, impregnada de toda a ausência que pesava sobre mim. Olhando agora, percebo que demorei muito para, efetivamente, habitar São Paulo. Eu estava, primeiro, fugindo de mim — fugindo da dor que eu sentia, impossível de ser expressada em um lugar desconhecido, cujos discursos eu não dominava, cujas ruas, cujas curvas, cujos prédios eram todos um sinal opressivo do que eu havia perdido.
Cada luto termina quando se integra, como mais um anel, na cadeia de lutos do sujeito. Por outro lado, cada luto se abre ao conectar-se com a cadeia de lutos dos outros, por meio do sistema de ritos e mitos que cada cultura reserva para a partilha entre os viventes6.
Como eu poderia, alheio aos ritos e mitos desse novo lugar, desse Outro impossível, conectar-me, integrar-me, enfim, viver?
Como eu poderia eu não sei, mas era preciso. É preciso. A vida como você conhece acaba, e outra começa exatamente daquele ponto em diante.
E essa nova vida em São Paulo durou até agosto de 2024. Aos 30 anos, oito anos depois de entrar no apartamento vazio, eu saía, agora, pela porta de um apartamento vazio no centro de São Paulo. A força que me puxava para o centro agora me compelía para as suas bordas, para a retirada. Havia chegado a hora de substituir os vazios, de partir outra vez.
A vida como você conhece acaba.
Grande demais para ver completamente, grande demais para não ver. Grande demais para caber em mim, grande demais para que eu pudesse caber. Deixei o apartamento, saí pela porta do prédio em que vivi por quase uma década, entrei no carro e fui embora de São Paulo.
E a cidade permanece exatamente a mesma. Um que sai, um que entra, e a multidão segue em movimento.
O centro cede e o centro se mantém em pé.
É preciso dar um jeito, meu amigo. Erasmo Carlos.
de As Multidões. Charles Baudelaire.
de A metrópole e a vida mental. George Simmel.
de O Ano do Pensamento Mágico. Joan Didion.
de Lutos finitos e infinitos. Christian Dunker.
Maravilha!