A morte do espaço na contemporaneidade
Uma história sobre a internet, indústria fitness, literatura e a (falta) de bom-senso no geral - ou: isso é água.
Esse texto vai começar arrastado, mas me conceda essa colher de chá.
No início dos anos 2000, a possibilidade ter um plano de celular com uma quantidade elevada de mensagens de texto disponível era um enorme diferencial. Conversar com amigos por mensagem, utilizando abreviações para facilitar a digitação no teclado numérico, representava um avanço impensável para o contato a distância.
Quando chegava meia-noite, então, e as operadoras de telefonia cobravam apenas um pulso para se conectar a internet discada, um novo mundo estava disponível, com milhões de informações ao alcance de um clique - e uma boa dose de paciência, porque cada imagem carregada tomava tempo.
Lá por 2004, 2005, quando as opções de banda-larga começaram a se popularizar, ainda que com preços elevados, muita gente descobriu uma realidade paralela na internet, e muita gente, que no cotidiano se sentia deslocada, encontrou nos ambientes digitais um acolhimento inesperado e bem-vindo.
Isso tudo não aconteceu no vácuo.
Esse processo de aglutinação das informações na internet, hoje hipermaximizado com conectividade disponível em praticamente todos os celulares, em que o mundo cabe em sites, redes sociais, blogs, etc., carregou mudanças significativas na nossa percepção de identidade, de espaço e de tempo.
Na medida em que substituímos o espaço físico pelo digital, o tempo perfura o tecido do espaço, e a nossa noção de cronologia - uma coisa depois da outra - dá lugar a uma constante sensação de instabilidade circular. Tudo, ao mesmo tempo, o tempo todo, em todo lugar (sobre isso: Katia Canton, em Tempo e memória).
A instabilidade do tempo e do espaço são refletidas no que conhecemos por identidade: a globalização do acesso afetou a ideia de identidade nacional; hoje, o que vemos é um conceito cambiante de identidade, que se move de maneira constante e temporária num sistema de múltiplas significações, e nós mesmos temos dificuldade em precisar quem somos, porque nunca somos, a todo instante, um só. Esse é o argumento construído por Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade.
Soma-se esse encurtamento brutal das distâncias a sensação instável de um tempo circular com a multiplicação de significações da identidade, e nos vemos dentro de um cenário em que a vida e a verdade passam a ser expressas, majoritariamente, a partir da rememoração da experiência, a partir da primeira pessoa (sobre isso: Beatriz Sarlo, em A guinada subjetiva).
A realidade contemporânea contém um desejo poderoso pela vida do outro, pela intimidade, pelo vivencial: por aquilo que se experimenta de verdade. A verdade enquanto conceito absoluto dá lugar a verdade do indivíduo, ou aquilo que ele viveu, que é verdade porque ele experimentou, um tipo de expressão muito em alta no Big Brother (“essa é a minha verdade!”). Vivemos o que Leonor Arfuch chama, em O espaço biográfico, de proeminência do vivencial.
Esse texto começou arrastado, cheio de elucubrações teóricas, e eu te agradeço se você continuou lendo até aqui. Essas são as bases para o que eu quero discutir.
Pode parecer, nesse momento, que eu farei um manifesto contra a internet ou contra as redes sociais ou contra reality shows, mas não é nada disso. Eu sou uma das crias da internet, que mudou completamente a minha vida (sobre isso: TODO PROBLEMA NO COMPUTADOR ERA CULPA MINHA).
O que eu quero falar é sobre como a morte do espaço na contemporaneidade tem contribuído para nossa incapacidade de enxergamos as coisas e, especialmente, nós mesmos:
“É preciso sair da ilha para ver a ilha”
PARA SER COMO EU SOU, BASTA VIVER COMO EU VIVO
(ou, ao menos, como eu digo viver)
Se você não frequenta muito o mundo fitness ou o nicho de youtubers investigativos da cultura pop, talvez você não esteja por dentro do escândalo do Liver King, que é, em português, O Rei do Fígado.
Se você já sabe do que se trata, aguenta aí. Se você não sabe, eu vou explicar rapidamente.
Primeiro: Liver King é um personagem que ficou famoso na internet, especialmente no Instagram e no TikTok, por, inicialmente, comer fígado cru.
Ele pode ter, a princípio, chamado atenção pela sua excentricidade. Mas logo ele se tornou um enorme guru fitness, com mais de 1 milhão de seguidores no Instagram e mais de 3 milhões no TikTok.
O que ele vendia era simples, e por isso atrativo para tanta gente: uma lista de princípios que você deveria seguir para se ligar a sua ancestralidade e abandonar as fraquezas e vícios da vida contemporânea, em um caminho para se tornar o verdadeiro você - your trueself. Como jogar carniça para hienas, é a fórmula perfeita para chamar a atenção de uma multidão que não se reconhece e não sabe quem se é.
Para vender seu produto - e ele tinha uma variedade deles no campo da suplementação -, Liver King usava seu corpo musculoso, com diversos vídeos beirando o absurdo com treinos irrazoáveis e uma alimentação no mínimo duvidosa, afirmando, a todo momento, que aquele físico, aquela vida, aquela experiência poderiam ser conquistados por qualquer um. Bastava ser como o Liver King.
É claro que desde o primeiro momento grande parte das pessoas disse que o cara era um picareta e que o corpo que ele tinha era fruto de uso constante de anabolizantes, porque esse não é um corpo naturalmente alcançável - e não é.
Já discuti, no texto COLOCANDO ANILHAS NA BARRA, como as expectativas são absolutamente irreais quando se trata do início da jornada em exercícios físicos, em especial por figuras como o Liver King.
E ele convenceu muita gente, muita, muita gente que aquele físico que ele ostentava era natural, sem nenhum uso de produtos esteroides.
Aí entra o escandalo: um youtuber famoso no nicho fitness, Derek do canal More Plates More Dates, teve acesso aos e-mails que o Liver King enviou para um treinador de bodybuilders antes de aparecer como esse personagem nas redes sociais. Em resumo, ele estabeleceu um ciclo enorme de uso de anabolizantes, com apoio profissional, para construir o corpo que ele ostenta hoje, com o foco específico em se tornar um fitness influencer. Isso é dito expressamente.
Você pode assistir ao vídeo da revelação aqui: The Liver King lie.
O Liver King, como a ampla maioria dos influenciadores fitness da internet, fabricou uma verdade e, ciente dessa ânsia popular por relatos da experiência, por algo com o que você possa se identificar, ou se inspirar, transformou a sua verdade em um produto.
A experiência individual do Liver King rendeu a ele milhões e milhões de dólares. Desmascarado ou não, ele continua um milionário.
E isso não é uma crítica aos influenciadores em geral. É natural que, havendo um deslocamento da noção de experiência para o ambiente online, surja um sem número de pessoas que agreguem as qualidades que nós admiramos. E essas pessoas nos influenciam.
O problema é quando essa influência se dá em bases falsas, atraindo quem já está fragilizado pelo seu autodesconhecimento, e vendendo a essas pessoas a possibilidade de uma vida ilusória. Antes eram as revistas estabelecendo o que era belo e o que não era. Hoje, a cada clique que você dá no feed do Instagram tem alguém te dizendo que você é inadequado, que do jeito que você faz não serve, que você está errado, sempre com a pegadinha no final: essa pessoa pode resolver tudo isso para você por meio de um curso, um produto de beleza, uma mentoria.
Outra face bizarra dessa ausência de espaço é que, paradoxalmente, há uma sensação de que não existem limites, porque a internet que nos coloca em contato tão íntimo com a vida do outro serve de proteção para que ajamos sem nenhum filtro com esse outro: a violência vira regra, porque o outro é só mais um rosto na tela, e a um rosto na tela nós não devemos respeito algum.
Um dos fitness influencers que eu acompanho é o canadense Jeff Nippard, que apresenta um conteúdo voltado para a musculação baseada na ciência. Entre seus vídeos mais famosos - e que gerou maior controvérsia na terrível comunidade fitness -, está o Porque obesidade não é uma escolha (explicação científica).
Falar sobre o corpo gordo nesse nicho é, geralmente, fazer chacota. Nippard adotou uma postura diferente. A versão em texto e traduzida do vídeo foi publicada pelo Startup da Real. Vale a pena ler.
Apesar de muito retorno positivo, não foi irrelevante a quantidade de comentários grosseiros, ofensivos e puramente escrotos que o Jeff Nippard recebeu. Parte deles, reforçados pela misoginia de todo dia, focou em sua noiva (que fala publicamente sobre os distúrbios alimentares que ela enfrenta devido à dismorfia corporal), afirmando que o vídeo não seria mais do que uma desculpa para defender a namoradinha gorda.
Pessoas ruins sempre existiram e sempre vão existir. Se a internet potencializou ou só deu voz, eu não sei, mas eu estou certo de que essa nova dinâmica social deu aos cretinos muito material para explorar, e pessoas comuns - i.e., quem não faz da influência digital um meio de vida - vez ou outra se encontram no fogo cruzado, recebendo uma avalanche desproporcional de crítica por situações aparentemente inofensivas.
Se você usou o Twitter mais do que 10 vezes na vida, você sabe do que eu estou falando.
O AUTOR ENGAJADO
(ou A literatura dos algoritmos)
Pode não parecer haver relação entre o Liver King e o universo literário, mas eu acho que há. Não diretamente, mas na medida em que ambos são atingidos por fenômenos semelhantes da experiência contemporânea.
Em um texto anterior, escrevi sobre o que nos leva a ler histórias de ficção e o que nos leva a ler histórias em geral. O que importa nessas histórias. Na atualidade, vemos uma proliferação de livros que são chamados de necessários, e os livros necessários são aqueles em que, via de regra, há uma representação da experiência do autor, e essa é uma experiência que se reputa relevante de ser expressada - e eu não nego a relevância dessa experiência, como, por exemplo, a experiência diante do machismo, a experiência diante do racismo, a experiência diante da pobreza, etc.
O que eu rejeito, num nível pessoal e intelectual, é atrelar valor ao livro única e exclusivamente a partir da importância que se dá, no âmbito social e histórico, à experiência de quem escreveu aquele livro.
Surgem, aí, os leitores sensíveis, os editores prontos para retirar o que pode ser polêmico, para dizer o que pode e o que não pode ser contado. Surgem aí leitores que rejeitam livros - o que é um direito deles - porque são livros que expressam situações incômodas, absurdas, abjetas, até, alegando que o autor, ao escrever sobre esses temas, está, também, manifestando apoio a eles - o que me soa como incorreto e, sinceramente, um pouco estúpido.
Um livro com um personagem racista não significa um autor racista, assim como um livro com um personagem cheio de boas intenções não significa um autor cheio de boas intenções. Parece óbivo, porque é.
Em O CORAÇÃO DA NARRATIVA eu discorri mais alongadamente sobre esse tema.
Aqui eu quero falar sobre outro fenômeno: a nova posição do escritor em um contexto de engajamento digital.
Quase todas as profissões, senão todas, sofrem com esse mal - a necessidade de transformar sua expertise em um item para consumo do algoritmo. Está aí o TikTok cheio de médicos, arquitetos, músicos, cozinheiros, etc e tal, fazendo vídeos curtinhos para divulgar os seus trabalhos. Não há, por si só, problema algum utilizar as plataformas vigentes como instrumento.
O problema, da forma como eu vejo, é quando essa realidade de alimentação do algoritmo se torna uma imposição à vida profissional, em que a expertise importa muito menos do que a capacidade do indivíduo em atrair engajamento para o seu produto.
O problema, da forma como eu vejo, é quando tudo vira experiência, e essa experiência vira coisa, e essa coisa tem seu valor definido pelo quanto ela viraliza.
Para escritores, as plataformas sociais são uma maravilha - em parte. É a possibilidade de, sem acesso aos meios tradicionais de publicação, historicamente restritos, encontrar leitores. Serem lidos. Extrapolarem a bolha.
Quando publiquei meu livro, o Eduardo Lacerda, editor da Patuá, disse que o grande desafio era superar a barreira dos amigos e familiares, que são aqueles que nos leem por gostarem de nós, e atingir o desconhecido. Sempre que uma pessoa que não me conhece a não ser pelo meus textos me contata, eu sinto genuína alegria.
E as plataformas sociais - Facebook, Medium, as newsletters - são fundamentais para que vozes talentosas encontrem eco em leitores interessados.
Mas nem sempre o interesse do leitor se restringe a obra do autor. A ânsia do vivencial faz com que o leitor passe a exigir do autor não só o seu texto, mas o seu retorno, a sua proximidade. Querem que o autor o reconheça, que o autor lhe retribua o favor que ele lhe prestou ao ler seus textos, seus livros.
Surge uma deturpação com relação ao texto literário, que deixa de ser o objetivo em si, para ser apenas um meio de expressão dessa relação do autor engajado com seu público - um autor que dá ao público o que ele exige.
A crítica literária resmunga, às vezes com razão, às vezes pelo atraso, contra as resenhas dos Booktubers, Bookgrammers e afins, que transformaram a experiência de leitura em um conteúdo para as redes sociais. Booktubers e Bookgrammers não se propõem críticos (bom, a maioria não), mas leitores gente como a gente, e por isso atraem tanta atenção, servindo, muitas vezes, de ponte para o acesso literário. Nós queremos consumir aquilo que compreendemos, aquilo com o que nos identificamos.
E muitos desses produtores de conteúdo relacionados a livros acabam se tornando influenciadores maiores do que os próprios escritores, virando uma espécie de carimbo de qualidade para o público, como quem diz: isso é bom, isso não é.
O trabalho do escritor, no entanto, não é engajar com o público, agradar o público, enviar mimos ao resenhista. Ele pode fazer isso, mas não é esse o seu trabalho enquanto escritor, e sim como divulgador da sua própria obra, que são coisas diferentes.
Há pouco tempo, um perfil no Twitter de uma moça envolvida nesse meio de Bookgrammer reclamou de autores que não respondem comentários de leitores. Disse que os autores deveriam saber que, ao ignorarem os leitores, vão afastá-los, e eles pararão de divulgar o seu trabalho.
É um sintôma sério de carência, mas é parte de um contexto maior. Dentro de uma realidade em que toda experiência é compartilhável, em que toda intimidade é apresentável em público, por qual razão essa leitora contumaz não se sentiria autorizada a exigir do seu escritor favorito uma contrapartida além do texto literário em si?
O trabalho do escritor é escrever, mas o sucesso do escritor parece depender da sua capacidade de manter o algoritmo satisfeito. O leitor não quer só o livro; ele quer o livro e a experiência.
Ele quer alguém com quem se identificar, e esse é um peso difícil de carregar.
Esse texto não trata, assim, da rejeição das redes sociais, da demonização da internet ou de um lenga-lenga de conservador contra os males do pós-modernismo!
Esse texto é uma simples defesa, por meio de um punhado de palavras, do espaço. Do espaço entre nós e o que gostamos. Do espaço entre nós e o que vemos. Do espaço entre nós e o que lemos. Do espaço entre nós e nós mesmos. Com o colapso das distâncias é mais difícil diferir a verdade da mentira, o autêntico do fabricado. Se você aproxima muito um objeto do seu olho, ele invariavelmente ficará desfocado. Se você o afasta demais, você perde os detalhes.
A quantidade de informações que recebemos a todo instante afeta nossa capacidade de interpretar, e viramos consumidores passivos, atordoados e maravilhados, simultaneamente, pelo fluxo frenético de novos conteúdos.
Acho que todos nós nos beneficíarimos de um meio-termo. Sair da ilha, de vez em quando, para vermos a ilha; experienciar e não só consumir a representação da experiência. Diminuir a velocidade. De repente, você olha ao redor e se dá conta: isso é água.
Talvez esse aí seja o teu texto do qual eu mais gosto.
Mas não tenho certeza, preciso reler os outros.